sábado, 16 de agosto de 2014

Arnaldo Viana - De facas e couros‏

De facas e couros
Arnaldo Viana - arnaldoviana.mg@diariosassociados.com.br
Estado de Minas: 16/08/2014




Comemoração como sempre gostou. Poucos amigos, parentes e a namorada. Assim foi a chegada dos 40 anos de Terê. Menino criado na simplicidade da roça, não gostava de ostentação nem de exageros. Os presentes seguiam essa linha. Um par de meias, um chinelo de dedos, cuecas, canetas, um bom livro. Naquele ano, a namorada trouxe-lhe uma faca. Pequena, lâmina estreita, cabo de madeira bem trabalhado. Estavam os dois sozinhos. Os demais convidados já haviam se retirado. A garota, uma lourinha magra, foi ao banheiro retocar a maquiagem. Quando voltou, encontrou-o sentado, com a faca nas mãos, admirando-a e viajando nos pensamentos.

– Gostaria de advinhar onde está agora, amor.

– Estou na infância. Uma faquinha como esta atiça recordações...

– Pode me contar uma delas?

– Claro, claro. Foi com uma faquinha assim que o meu pai tirou o couro da mesma onça durante 10 anos seguidos.

– O quê? O couro da mesma onça, durante 10 anos?

– Verdade amor, verdade. Precisava ver. Sabe que nasci na mata, lá pelos lados da divisa com a Bahia, e naquele tempo não havia todo esse cuidado, essa preocupação com o bem-estar dos animais.

– Sei. Mas vamos lá, fale dessa façanha do seu pai.

– Façanha um tanto perigosa para mim e meus seis irmãos.

– Perigosa?

– Demasiadamente perigosa. Já contei que meu pai tinha um pedaço de terra ao lado de uma faixa de mata atlântica e descobriu que lá habitava uma onça-pintada, bonita de dar gosto. Sou o mais velho dos irmãos e um dia o vi afiando uma faquinha, parecida com esta, mas não muito bem trabalhada. Passava a lâmina preguiçosamente na pedra de amolar e depois experimentava o fio.

– Devia ser um homem paciente.

– E era. Certa manhã, ele me chamou para acompanhá-lo à mata. Disse que iríamos caçar a onça. Em uma parada no caminho, explicou o que eu deveria fazer. Meu papel era atiçar o animal e fazê-lo correr atrás de mim. Eu tinha uns 10 anos, por aí.

– Louco, hein? E você?

– Sim. A gente não se atrevia a desobedecê-lo. Enquanto atiçava a onça, ele ficava uns 50 metros à frente, escondido atrás do tronco de uma árvore.

– Pera aí! Você diante da fera e seu pai escondido? Folgado, não?

– Fazia parte do método dele. Na verdade, não matava a onça. Só tirava o couro.

– Como assim, tirava o couro sem matar?

– E bem! Eu atiçava o animal e ele avançava, louco, em mim. Dava tudo na corrida pela trilha da mata e a onça enfezada atrás. Ao chegar à árvore, seguindo as orientações do meu pai, pulava de lado. Quando a onça passava pelo tronco, ele, com a mão esquerda, dava um talho vertical na testa do bicho, e, com a mão direita, agarrava o rabo e puxava. O couro saía inteiro nas mãos dele.

– Não acredito! E a onça? Morria?

– Não. Ela saía correndo, urrando de dor, e sumia mato adentro. Os animais têm recursos para curar suas feridas, sabe?.

– Não! Imaginei que a onça morria de infecção...

– Não. Você já viu um cavalo rolando no chão? É para curar infecção. A terra protege a pele. A onça fazia o mesmo, creio, e um ano depois, lá estava ela, de pele nova e brilhante. E lá íamos de novo, eu e meu pai.

– Louco, cara!

– Quando completei 14 anos, meu pai me trocou por meu irmão, dois anos mais novo. E assim o fez, de filho em filho, durante 10 anos.

– E a onça aguentou? Você e seus irmãos nunca se machucaram?

– Aguentou e ninguém se feriu! E essa faquinha me leva de volta a aquelas aventuras loucas.

– Amor, hora de ir. Esta foi a história mais maluca que você já contou. Difícil de acreditar.

– Sei disso, amor, sei disso. Por isso só conto para você. 

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