Por que se associa corrupção e esquerda?
Valor Econômico: 03/12/2012
Fora dos Estados Unidos poucos conhecem a história do político Huey
Long, que mandou na Luisiana até ser assassinado, em circunstâncias
misteriosas, em 1935. Foi acusado de corrupto e saudado como reformador
social. Acabo de ler "Blood and Thunder", um romance policial cujo
autor, Max Allan Collins, jura que ele foi corrupto. Mas vasculhei a
literatura a respeito - e me chamou a atenção o quanto Long melhorou a
vida de seu Estado e a dos mais pobres. A Luisiana, quando ele assume o
governo estadual, em 1928, mal tem estradas (só 500 km com asfalto),
pontes (três) e carece de alfabetizados (eram 75%, a menor taxa no
país) e eleitores (1,7 milhão possíveis votantes não conseguiam
registrar-se). Em quatro anos, os números saltam. Constrói 3,5 mil km
de estradas asfaltadas e 111 pontes, alfabetiza gente e amplia o
direito de voto.Huey Long foi odiado pela elite do Estado, que dá os heróis do romance. Mas essa elite, à qual pertencia seu suposto assassino, não era admirável. Seus membros se achavam honestos e talvez até o fossem no sentido de não furtar, mas não viam problemas em oprimir os negros e em manter analfabetos os brancos pobres. (Qualquer semelhança com nossa República Velha não é mera coincidência). Assim, quando Long manda distribuir livros didáticos de graça, pelo menos uma prefeitura se recusa: não queria pobres alfabetizados, isto é, eleitores. Finalmente, a própria causa de seu assassinato tem a ver com o preconceito de cor, porque, se Carl Weiss matou Long, foi sentindo-se ofendido porque o ex-governador dizia que Weiss teria sangue negro.
Por que conto esta história? Porque ela faz pensar em vários conflitos atuais, na América do Sul. Temos líderes que, como Long, melhoram as condições de vida do povo. O fato não comporta discussão: em vários países cai a miséria. (Pode-se discutir, sim, quais serão as causas dessas mudanças. O fenômeno é internacional, então qual o mérito de cada governo nisso? Ou em que medida as causas mais recentes, como as políticas de Lula, terão sido decisivas? em que medida as mais remotas, como as de FHC? O que me parece indiscutível é que o fenômeno ocorreu sob governos de esquerda; mas, lembram alguns, bafejados pela conjuntura internacional). Agora, alguns desses governos foram acusados de práticas eticamente duvidosas. No Brasil, o julgamento do mensalão põe em cheque a conduta ética de líderes importantes do PT. Na Argentina, na Venezuela, no Paraguai, críticas mais severas foram dirigidas aos governos.
Haverá um link entre políticas de inclusão social, levadas a cabo com êxito por governos de esquerda, e a corrupção?
Ou será este um "topos", um lugar-comum do discurso? A maior parte das pessoas acredita em algo que chamamos de "realidade". Mas com frequência a "realidade" é construída. Nós, humanos, que enxergamos em três dimensões, com dois olhos, mal podemos imaginar como o peixe, com olhos que não convergem, vê seu mundo. Nós, que vemos bem mas cheiramos pouco, mal imaginamos como um cão, de olfato apuradíssimo e visão mais limitada, constrói o mundo. Faço uma comparação. Se tivermos óculos - políticos, religiosos, econômicos - que nos tornem mais atentos a umas características do que a outras, destacaremos aquelas. Ora, é provável que pessoas com mais dinheiro considerem que políticas sociais, que por vezes tiram dinheiro deles para dar aos mais pobres, estejam próximas do furto. Um governante que me tribute muito me fará, possivelmente, sentir assaltado; daí, a chamá-lo de ladrão vai só um passo. A fronteira entre a realidade e o mito ou a projeção mental se dilui. Pensem no aborto: para uns, é crime odioso, imperdoável; para outros, um direito da mulher. Ou nas ações dos sem-terra - crime comum, para uns, movimento social, para outros. Ou citemos o professor Joaquim Falcão, que considera absurdo condenar pessoas por pirataria de músicas - porque isso implicaria prender ou multar quase todos os jovens do mundo (ver seu "Transgressões coletivizadas e justiça por amostragem", disponível na internet). Óculos são decisivos.
Não tenho como chegar a uma conclusão, e lamento. Mas em vários casos, como no mensalão, convergem o mito e a realidade. Não há como negar que dinheiro tenha sido desviado, imoralmente, no mensalão. Mas esse fato não se pode confundir com o mito, direitista, que aponta todo esquerdista como criminoso. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. E reprovar a invasão pelos americanos de vários países não quer dizer que os governantes destes últimos fossem gente de bem. Surpreendo-me que pessoas que se dizem de esquerda admirem o Hamas, Saddam Hussein ou o governo do Irã. Também elas acreditam em mitos.
Mas será que a exclusão social se faz, pelo menos inicialmente, usando meios que incluem a corrupção? Roma, no século final da República, é o terrível exemplo. Quando falha a inclusão social por meio da reforma agrária dos irmãos Gracos, sucede-se um período longo e turbulento de guerras civis, ao fim das quais triunfa quem melhor apela ao povo: Júlio César, que extingue a república e institui o poder de um só. Por outro lado, o comunismo é a grande exceção à corrupção dita "de esquerda". Dele, falarei em outra coluna. No fundo, a corrupção parece maior quando a inclusão social é promovida, não por uma revolução, mas de dentro, por uma fração minoritária da classe dominante que tem a inteligência de cooptar frações significativas das classes pobres. Quem lutar pela ética na política tem que sair do mito para entrar na história; tem que procurar entender esses fenômenos que, aqui, apenas assinalo.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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