ARQUIVO ABERTO
O balconista
Rio, 1998
Entrei em 1998, ano da transição do VHS para o DVD, portanto o aviso para rebobinar a fita ainda pairava sobre a minha cabeça em um cartaz na parede, como um mandamento solene.
Já estava velho para a função ("contingências do mercado de trabalho" era a desculpa que usava com a minha mãe), então gostava de fingir que estava lá pela oportunidade de estudar a plateia dos filmes que faria no futuro.
Não era uma mentira completa; na verdade poderia prestar consultoria para produtores de cinema sobre o que nossos espectadores querem ver na tela. Ou seja, nada de preto e branco, pouca conversa ("filme desse Woody Allen só tem gente falando") e é bom maneirar no experimentalismo: o mantra do público médio de locadora é "queria um filme leve, hoje não estou a fim de pensar".
E pornografia, por exemplo. Pessoas de vários estratos sociais pegavam filmes de sacanagem, mas percebi um estranho padrão entre os porteiros da área: só alugavam pornôs brasileiros. Perguntei o porquê e disseram que preferiam as mulheres gemendo em português; aparentemente existe diferença entre o "yes" e o "sim" na hora de fantasiar.
Mas não usei minhas horas de trabalho só para praticar pesquisa de mercado. Guardei muitas histórias bacanas, embora na maior parte das vezes estivesse cercado por pessoas apressadas e sem muita familiaridade com o conceito de fila. Na época, queria matar o autor da frase "o cliente sempre tem razão". Meu herói era Randal Graves, o personagem de Jeff Anderson em "O Balconista", filme do Kevin Smith de 1994, que tratava mal todos que tivessem o azar de entrar no seu estabelecimento.
Já tive que ajudar a separar uma briga de socos entre um cliente e um entregador (o entregador tinha razão, viu o que disse sobre a tal frase?), precisei empatar um casal que se trancou no banheiro e fui descontado na minha primeira semana porque um cara se associou com uma identidade falsa e levou oito lançamentos. Ok, essa não foi uma história bacana.
Alguns sócios da locadora eram umas figuras, como o cardíaco que ligava pedindo sempre pornôs e cigarros malocados no saco de entregas. Volta e meia uma ambulância parava em frente ao seu prédio. Tinha também a mulher chata de uma figura importante da MPB; quando ela finalmente brigou com o dono e pediu para se desassociar, demos uma festa para rasgar sua ficha.
A locadora ficava no Jardim Botânico, no meio da fina flor da burguesia carioca, o que foi mais uma lição sobre o "ethos" das nossas elites: era uma choradeira para pagar qualquer dívida, mínima que fosse. Uma cineasta (vou manter seu anonimato, ao qual aliás está acostumada) discutiu comigo por coisa de centavos em balas de menta, alegando achar que eram cortesia. Por mim até seriam, não fossem os balconistas também responsáveis pela "bombonière" e pelo fechamento do caixa, nos obrigando ao trabalho de corno de contar chiclete por chiclete e comparar o resultado com o montante na registradora -com desconto no salário quando os valores não batiam.
Enfim, tempo bom que não volta mais, graças a Deus.
Queria dedicar esse texto ao saudoso Marcão (que nos deixou em 2011), meu colega de balcão e rubro-negro como eu, e ao cliente vascaíno que torrava tanto o nosso saco que nos fez bater o camelódromo do Saara um dia inteiro até conseguirmos duas camisas do Real Madrid para recebê-lo no dia da derrota na final do mundial de clubes. O cara nunca mais voltou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário