domingo, 23 de dezembro de 2012

Pioneira, Uerj vira 'Congo' depois de implantar cotas

FOLHA DE SÃO PAULO

Universidade carioca, que adotou sistema há dez anos, tem bolsa e bandejão mais barato para cotistas, mas alunos veem racismo velado na sala de aula
MORRIS KACHANIENVIADO ESPECIAL AO RIO
Até dez anos atrás, quando adotou o sistema de cotas, a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) mais parecia um shopping da zona sul, área nobre da cidade, com o predomínio de alunos brancos da classe média.
Hoje, o apelido da Uerj é "Congo". Surgiu em 2005, em um torneio esportivo envolvendo faculdades de direito, quando as torcidas adversárias assim se referiam, em tom de gozação, à diversidade étnica da universidade.
Os alunos da Uerj decidiram assumir o colorido e, desde então, o país africano se tornou uma espécie de ícone da autoafirmação, a ponto de o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luiz Fux, que, assim como Joaquim Barbosa, leciona na Uerj, ter citado o Congo no voto sobre cotas para negros em abril.
A Uerj foi uma das primeiras universidades a adotar o sistema, em trajetória de erros e acertos. Hoje, 45% das vagas são reservadas para cotistas -20% para alunos de escolas públicas, 20% para negros e indígenas e 5% para deficientes. O denominador comum é a renda per capita mensal de até R$ 960.
A reportagem da Folha organizou grupos de discussão com alunos -cotistas sociais, raciais e não cotistas- e ouviu professores e a reitoria.
A percepção é que o sistema de cotas implantado na universidade ainda apresenta distorções e que o preconceito existe, porém a avaliação, de maneira geral, é mais positiva do que negativa.
O cotista tem direito a uma bolsa de R$ 400, a cursos de reforço e a material gratuito, além de desconto no bandejão, pelo qual paga R$ 2 no almoço -não cotistas pagam R$ 3. A bolsa, antes restrita ao primeiro ano, foi estendida em 2008 em razão do alto índice de evasão.
De acordo com o estudante Rodolfo Righi e seus colegas Matheus e Rodrigo (todos não cotistas), há um aluno cotista, do primeiro ano de engenharia, que não sabe sobre seno e cosseno. "É claro que a aula anda mais devagar e acaba sendo nivelada por baixo", reclamam os estudantes.
A nota de corte é um ponto sensível. Em 2012, a pontuação mínima em engenharia civil para não cotistas foi 81. A de cotistas de escola pública, 41. A de negros, 36.
Outra distorção está na denúncia de que alguns alunos brancos se autodeclaram negros. "São casos pontuais, mas não há como fiscalizar. A lei se autoaplica", diz a sub-reitora Lená Menezes. "Investigamos os sinais de riqueza apenas quando não correspondem ao teto da cota."
No outro extremo, são vários os exemplos de mobilidade social proporcionada pelo sistema. É o caso de Atilas Campos Filho, 28, criado em Belford Roxo e graduado pela Uerj, filho de empregada doméstica e que hoje atua como jornalista. "Foi um divisor de águas. A universidade mudou completamente minha forma de ver a vida."
Entre os professores, a constatação é que o cotista tem um desempenho inferior no primeiro ano, mas depois deslancha e praticamente se iguala ao não cotista. Estatísticas mostram que homens cotistas e não cotistas apresentam uma média final de 5,9 nas notas. Entre as mulheres, as não cotistas obtêm 7,1 e as cotistas, 6,9.
O tempo de permanência até a conclusão do curso é o mesmo. Mas a taxa de evasão dos cotistas é inferior: 20%, em comparação com 33% dos não cotistas.
"O cotista é mais esforçado, pois ele sabe que essa pode ser a única chance de mudar sua vida", afirma Hilda Ribeiro de Souza, professora de odontologia. "O que mudou é que agora o professor precisa dar mais atenção, não só supervisionar."
Na sala de aula, não é possível saber quem é cotista. A cor da pele pode ser uma pista. A maioria concorda que existe um racismo velado e que a segregação entre os alunos não é incomum.
O cotista com culpa não é um ponto fora da curva. Especialmente em disciplinas que exigem cálculo, nas quais as deficiências de formação são mais visíveis. Segundo um cotista de economia, que preferiu não se identificar, "muitos sentem vergonha no início. E há preconceito".
Por outro lado, o aprendizado resultante do convívio com a diferença é valorizado: "É bom juntar todos na mesma sala. Eu mal saía da zona sul, nunca tinha conhecido ninguém que pegava trem para ir ao colégio", diz a aluna de direito Raissa Oliveira.
O reitor da Uerj, Ricardo Vieralves, afirma que o nível de qualidade do ensino na universidade não caiu depois da adoção das cotas.
A comparação da performance dos formandos da universidade no Enade antes e depois da adoção da medida mostra que a média geral na Uerj se manteve, com pequenas mudanças nas notas, para cima ou para baixo, dependendo da faculdade.

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