sábado, 2 de fevereiro de 2013

Bambam e Quixote(Shows de realidade) -Mozahir Salomão Bruck e Jeane Moreira

Shows de realidade, como Big brother Brasil, mostram seus limites com o passar dos anos e parecem cobrar reinvenção permanente para produzir interesse no público 

Mozahir Salomão Bruck e Jeane Moreira
Estado de Minas: 02/02/2013 

De vendedor de coco a DJ, Bambam, vencedor da primeira edição, não aguentou o tranco na temporada atual do reality


Foi inspirado no pensador norte-americano William James, uma das referências do pragmatismo, que Alfred Schütz cunhou a noção de múltiplas realidades. Para ele, tal perspectiva permitiria estudar formas de racionalidade diversas, como a noção de que o lugar de integração e de socialização seria também espaço de exercício de poder e de exclusão. Schütz destacou que o conhecimento em termos do senso comum, próprio de um grupo, de uma comunidade, aparentemente possui coerência, clareza e consistência para os que ali estão inseridos, apesar de que, eventualmente, possa estar coberto com um “manto de suposições e de ignorância” .

 Ainda seguindo os passos de James, Schütz avançou na noção de subuniversos e estruturou o conceito de províncias finitas de significado. Sendo cada província composta por significados compatíveis entre si, as experiências que se dão em determinada província de significado apontariam para um estilo particular de vivência – indiciariam um particular estilo de construção de saberes. Com isso, configurariam uma instância dentro da qual todos os pressupostos se encaixariam. Porém, é na finitude das províncias de significado que suas verdades se encerram – por isso, Schütz as nomeou províncias finitas de significado. Não há espaço para a estranheza dentro da província. Como assinalou Schütz, somente as evidências valem.     

Partindo de James e Schütz, é que se pergunta: o que existe de realidade nos reality shows? Muita coisa, certamente. Aliás, pode-se dizer que há muitas realidades, ou melhor, múltiplas realidades: o real da inscrição narrativa característica desse tipo de programa; o real das circunstâncias econômicas e também culturais que o envolvem, viabilizam e influenciam; o real dos jogos de relacionamento e de poder entre os participantes a partir de regras e definições de quem comanda o reality show; o real do que é selecionado, editado e levado ao ar do que “acontece na casa”; o real proto-oracular do apresentador do reality; o real da vinculação do telespectador com aquilo a que assiste e o real das reverberações do programa no conjunto da sociedade. 

Este tipo de atração televisiva, praticamente presente em todo o mundo, oscila entre picos elevados de audiência e agudas curvas descendentes de interesse. A exemplo de outros países, também aqui o modelo Big brother Brasil (BBB) enfrenta, há alguns anos, perda significativa de audiência. Haja vista que o programa de estreia da atual edição teria amargado o pior nível de audiência de todas as suas edições, tendo ficado próximo da metade daquela registrada do BBB de 2002, quando a estreia alcançou 49 pontos. No caso do BBB, a curva é descendente – vem caindo, pelo menos, nos três últimos anos. 

Depois de 13 anos, o Big brother Brasil parece ter como principal desafio reinventar-se. Independentemente dos perfis dos participantes, tudo já parece ser muito previsível para o público: afetos, paixões, intolerâncias, as grandes amizades que se criam, os ódios que se constroem, venenos que se destilam, destilados que se ingerem com excesso, as calúnias, as injustiças, as incompreensões... quando será o primeiro beijo entre os participantes... o histrionismo dos emparedados nos dias de eliminação ao verem seus familiares pela tela, em meio a um grupo enorme de pessoas outras, que ninguém sabe quem são e por que estão ali. 

O Big brother tem recebido atenção e análise de estudiosos de diversas áreas de conhecimento, com destaque para o modo de categorizá-lo – se como um entretenimento ou como realidade. Como saída para este desafio conceitual, a tendência tem sido tratá-lo como uma hibridização. Outros autores, porém, o entendem como algo próximo a uma pararrealidade e alguns teóricos optam por percebê-lo como exclusiva ficção – em que tudo é tramado, enredado. 

Na edição de 2013, na tentativa de inovar, a produção do programa apostou na volta ao passado e convocou ex-participantes para comporem o grupo. Dentre eles, estava Kléber Bambam, o primeiro a vencer o BBB, em 2002. Pode-se dizer que Bambam foi um dos participantes que mais marcaram a história do reality. O brother criou uma boneca feita com pedaços de sucata, que ele batizou de Maria Eugênia. Bambam fez dela a sua mascote dentro da casa. Importante ressaltar que, no momento em que construiu a boneca, ele enfrentava sérios problemas de relacionamento com os demais confinados. Quando a produção do programa decidiu retirar Maria Eugênia da casa (possivelmente porque já provocava algum tipo de disfunção no desenvolvimento da trama), Bambam desesperou-se e chorava intensamente, dizendo que, por estar isolado, ela era sua única companhia. O episódio criou uma comoção entre os telespectadores e a boneca acabou sendo devolvida a Bambam. 

Devaneios 
O caso de Maria Eugênia é exemplar na proposta desta reflexão de pensar o BBB a partir das províncias finitas de significado de Schütz. O fenomenólogo austríaco, em sua brilhante análise de Dom Quixote (ver “Dom Quixote e o problema da realidade”, traduzido no livro Teoria da literatura em suas fontes), apresenta a sofisticada teia de sentidos armada por Cervantes para conectar o mundo idealizado/imaginado pelo herói com o mundo real das demais personagens, que, apesar de, a princípio, não compartilharem da “loucura” do cavaleiro, em algumas das aventuras acabam por mergulhar nas mesmas águas, experimentando, em profunda crença, os fantásticos, alegóricos e ilusórios devaneios quixotescos.

O público, ao que parece, se apiedou de Bambam, que, conscientemente ou não, conseguiu agendar, pela sua crença, uma denúncia de exclusão e garimpagem de empatia para si – ou seja, o lugar de integração é também de poder e de exclusão. Maria Eugênia materializou essa nova dimensão de realidade. A boneca se transformou, comparando-se com o romance de Cervantes, no seu “escudo de Mambrino” (que no caso de Quixote tratava-se de uma bacia velha roubada de um barbeiro). 

Ao fazer com que distintas dimensões de realidade – e suas “verdades”, mesmo as mais facilmente refutáveis – ganhassem importância, Bambam promoveu uma transposição de significados entre províncias finitas distintas – o que, segundo Schütz, constitui uma operação de encantamento. Maria Eugênia passou a encarnar os papéis de causalidade e de motivação. Ganhou tal relevância que acabou sendo decisiva no desfecho do programa. O verdadeiro e o falso, o imaginário e o concreto, o ilusório e autenticável não mais se negavam. Como assinala Schütz, é como falar em uma dialética não hegeliana.

Vencedor do BBB 1, Bambam diz ter estendido sua “amizade” com a boneca, mesmo depois de encerrado o confinamento, guardando-a até hoje em casa. Além disso, o brother tatuou uma caricatura de Maria Eugênia em seu braço direito. Reconvocado em 2013 para novamente estar no programa, Bambam desistiu logo na primeira semana da participação. Ao que tudo indica, Bambam já não é o mesmo e o Big brother Brasil também não. A televisão e os contratos de leitura que esta enseja, muito menos o são. As províncias de significado parecem ter se alterado drasticamente desde a primeira edição do programa. Afinal, nenhuma província vivida ou mesmo imaginada o seria. “Dinheiro não é tudo”, justificou Bambam ao deixar o BBB 2013 – o oposto do que alardeava, em sua primeira participação, o ex-vendedor de coco, confinado reincidente e hoje autointitulado DJ. 
 
* Mozahir Salomão Bruck é professor da PUC Minas. Jeane Moreira é graduanda de jornalismo da PUC Minas.

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