João Paulo
Estado de Minas: 02/02/2013
Lincoln foi um presidente que gostava de falar: crença no valor da palavra |
A grande novidade dos filmes Lincoln, de Steven Spielberg, e Django livre, de Quentin Tarantino, é que não se trata de filmes históricos, que falam do passado. São filmes sobre a escravidão e a busca da liberdade. Em outras palavras, sobre nossos tempos sombrios.
Quando Steven Spielberg decidiu filmar Lincoln havia uma justa expectativa de que ele mergulharia na emoção, no patriotismo e até na aventura que cercou a Guerra Civil. Emoção, patriotismo e aventura haviam sido seus caminhos até então. O cineasta, maduro e pessimista, preferiu fazer um filme sobre a única saída possível dos nossos impasses: a política.
Curiosamente, em seu melhor filme em muitos anos, a repercussão da crítica tem sido mais calorosa que a do público. Não é incomum ouvir dos espectadores que o filme é longo, lento e cheio de palavras. O que lembra a resposta de Mozart ao crítico que acusava sua música de ter notas demais: “Mostre as que estão sobrando para que eu possa cortá-las”, provocou.
Spielberg não fez um filme com palavras demais, mas com palavras certas. O cenário é de guerra fratricida. As armas não vinham resolvendo os impasses. A escravidão manchava o ideário que havia visto surgir a nação. Só restava a Lincoln convencer pela força das palavras em suas múltipla possibilidades: a razão contra o preconceito, a verdade contra a mistificação, a beleza contra o discurso tacanho, o humanismo acima dos ódios.
Em Lincoln, o roteirista Tony Kushner (que já havia colaborado com o diretor em Munique, outro drama político real fundado em dilemas éticos) elege, na longa trajetória do presidente, o curto período em que se debate a aprovação da emenda que daria fim à escravidão nos Estados Unidos. Tudo o mais fica em torno desse elemento, que surge como um sol ao contrário, um buraco negro que traga todos os debates e disputas.
A guerra segue sua sanha destruidora, a família de Lincoln sofre seus dramas íntimos, lobistas precisam agir para conquistar congressistas renitentes. No entanto, mesmo extemporânea (afinal a guerra era muito mais urgente), a questão se torna central para os destinos da nação. E só há um instrumento capaz de mudar os rumos da história: mais uma vez, a palavra.
O cinema, sobretudo o cinemão norte-americano, sempre apostou mais na inteligência das imagens. O que fez com que as produções do país se tornassem hegemônicas por muitas décadas foi exatamente a capacidade de arregimentar argumentos visuais, sonoros e cinestésicos, criando mais pathos que logos. O cinema americano convence pela emoção.
Em política, a emoção é combustível e resultado, no meio do caminho está o exercício do discurso, com sua crença fundamental na racionalidade e na capacidade de convencimento. A filosofia liberal, antes mesmo de se tornar política e economia, tinha como fundamento a ideia iluminista de que todo mundo podia saber tudo.
Nesse cenário igualitário, vence sempre o melhor argumento. É a base, por exemplo, da defesa da liberdade de expressão: todo mundo pode dizer tudo, cabendo a cada um, no exercício livre de sua razão, escolher o melhor caminho. Lincoln é um filme para quem gosta de política e liberdade.
O espectador precisa ficar atento, tudo que é dito tem segundas intenções. Nada é o que parece. Ao defender a palavra e sua expressão livre, nem por isso se pode relaxar da vigilância da inteligência. No jogo da política vale tudo, menos a ingenuidade. Quando o presidente Lincoln convence com pequenas histórias e parábolas, não está abaixando o nível da argumentação, mas operando em outro registro. Igualmente válido e possivelmente mais operativo.
Muito se comparou o processo de aprovação da emenda intentado por Lincoln com os jogos baixos da corrupção. Não há, em história, risco maior que o anacronismo. Podemos comparar circunstâncias, mas não julgar o passado com conceitos que não faziam parte de seu repertório intelectual e moral. O inverso também é perigoso: achar que tudo que vivemos hoje é resultado de processos atávicos que vêm de muitos séculos atrás.
O que o filme de Spielberg mostra é que os jogos de poder sempre existiram, que os instrumentos de convencimento são muitas vezes marcados pelos interesses menores, que o ceticismo deve comandar a inteligência, embora a ação deva brotar da vontade. Ganhar a confiança ou comprar as consciências não é um dilema universal, mas uma situação que se traduz diferentemente a cada tempo.
Steven Spielberg tinha muitos caminhos para contar sua história. Escolheu o mais difícil e se saiu muito bem. Ele recupera a política, a primazia do humanismo e o reino da moral no campo das grandes ações humanas, mesmo que sejamos todos anjos caídos. Mais caídos que anjos. Ao falar de política no cinema, o diretor realiza um filme político na medida das necessidades de nosso momento crítico.
Na conversa de Lincoln com soldados na trincheira da guerra, que abre o filme, o nome de Obama surge como uma elipse poderosa (que viria depois de os negros ganharem salários iguais, conquistarem posições de destaque no Exército e alcançarem o voto em 100 anos). Às vezes as melhores palavras são ditas em silêncio.
Molho de tomate Django livre, de Tarantino, com igual força, coloca em cena outro tratamento da escravidão. Aqui, em vez da palavra, o que domina é a ação e a revolta. Tarantino pega pesado. Transforma a servidão em violência pura, propõe comparações com o nazismo, banaliza a vida no limite do impensável. Ao reciclar o filmes de faroeste em sua vertente italiana, com seus excessos e mau gosto, deixa de fora dos seus maneirismos o núcleo que alimenta sua indignação.
O filme opera com os instrumentos que sempre foram manejados pelo diretor, da música à coreografia absurda da violência, dos personagens arquetípicos às situações mais inusitadas (como se o cinema pudesse reescrever a história, como fez em Bastardos inglórios), mas em nenhum momento baixa a guarda para a escravidão.
O diretor, cínico em alguns momentos de sua obra, parece ter encontrado o grau zero de sua revolta na alma cativa dos negros. O ódio à escravidão é manifesto em todos os quadrantes do humano. Tarantino não aceita a servidão legal, a servidão voluntária, a servidão cultural. A única saída – num terreno em que a palavra não existe e os negros são calados à força – é mandar bala.
Spielberg faz um diagnóstico. Tarantino indica o tratamento. O grande desafio que nos cabe, talvez a única saída, é inverter os sinais.
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