sábado, 2 de fevereiro de 2013

ENTREVISTA/MÁRIO ALVES COUTINHO » Literatura em celuloide-João Paulo‏

Livro reúne entrevistas com principais especialistas franceses na obra do cineasta Jean-Luc Godard 

João Paulo
Estado de Minas: 02/02/2013 

O crítico, ensaísta e tradutor Mário Alves Coutinho sempre teve uma relação intensa com o cinema de Jean-Luc Godard. Das sessões de filmes e debates no Centro de Estudos Cinematográficos (CEC) à pesquisa detida da obra do cineasta, que resultou em doutorado defendido na França e no livro Escrever com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard, a trajetória de Godard ocupou muitos anos da atenção do crítico. O livro que Coutinho está lançando pela Editora Crisálidas é mais uma etapa nesse percurso sem fim. Godard, cinema, literatura reúne entrevistas com nomes de ponta da crítica e da pesquisa acadêmica sobre a obra do cineasta franco-suíço. O tema que constitui o núcleo dos debates é a relação de Godard com a literatura. Não se trata de uma pesquisa do uso da ficção e das narrativas literárias nos filmes do cineasta, mas da forma como, por meio de elementos cinematográficos, linguísticos e retóricos, Godard faz literatura e, mais especificamente, poesia com a câmera. 

Mário Alves Coutinho colheu consensos e polêmicas em diálogos com especialistas, quase todos autores de livros canônicos sobre Godard. A partir de um roteiro prévio ele se abre a outras questões, de acordo com o perfil do entrevistado. O resultado é um livro que se acompanha como a uma boa conversa, que vai ganhando consistência à medida que o leitor vai se assenhorando dos temas e da linguagem dos críticos. 

Além de Godard, cinema e literatura, as conversas de Coutinho com seus interlocutores atravessam outros temas, como a crítica de filmes e o jornalismo cultural, emergindo daí um retrato sociológico sobre as publicações francesas do período da Nouvelle Vague e dos Cahiers du Cinéma. Não faltam observações finas sobre intelectuais como Lévi-Strauss e Jean Cocteau, que ampliam o espectro do tema central do livro. Os entrevistados foram Jacques Aumont, Phillipe Dubois, Alain Bergala, Michel Marie, Jean Douchet, Jean-Louis Leutrat, Jean-Michel Frodon, Marie-Thérèse Journot, Francis Ramirez, Jean Collet e Marie-Claire Ropars-Wuilleurmier. Confira a seguir trechos da entrevista de Mário Alves Coutinho ao Pensar.

O livro é resultado de suas pesquisas sobre a presença da literatura na obra de Godard. Como chegou aos nomes escolhidos para os diálogos?
O critério para escolher os entrevistados foi simples: competência no tema que eu queria abordar, que era exatamente a presença ou não da literatura na obra cinematográfica de Jean-Luc Godard. Ele é autor de vários livros: roteiros dos seus filmes, críticas de cinema, entrevistas, os textos de Histórias do cinema, que editou em quatro volumes pela Galimard; mas eu queria examinar a literatura nos seus filmes, e não nos seus livros. Quase todos os entrevistados escreveram livros sobre Godard – desde Jean Collet, que publicou o primeiro da extensa bibliografia godardiana, passando por Jacques Aumont e Philippe Dubois, até Alain Bergala, que escreveu sobre e editou obras do próprio Jean-Luc – ou então, ensaios importantes sobre sua obra e seus filmes. Francis Ramirez, por outro lado, era especialista em literatura e Jean Cocteau: ora, é conhecida a influência especial de Jean Cocteau em Godard. Já Jean-Michel Frodon, por exemplo, entrevistei-o devido à posição que ocupava: diretor de redação da revista Cahiers du Cinéma, lugar onde Godard escreveu, e onde conheceu André Bazin (ninguém passava pela órbita de Bazin impunemente). Além disso, quase todos eles eram professores na Paris 3, Sorbonne Nouvelle, universidade na qual fiz minhas pesquisas, e onde segui alguns cursos.


Quais as principais conclusões de seu trabalho sobre a relação entre a literatura e o cinema em Jean-Luc Godard?
Que Godard teve o desejo de fazer literatura primeiro, quando adolescente, mas que adotou o cinema, talvez por este ser, para sua família (altamente literária, com contatos diretos com Paul Valéry, André Gide e Rainer Maria Rilke), uma arte vulgar e interdita. Segundo ele, tentou escrever um romance, antes de dirigir qualquer filme, mas não passou da primeira frase. A literatura que ele quis publicar na Galimard, ele a imprimiu no celuloide. Além disso, com a minha tese de doutorado e meus livros Escrever com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard e agora Godard, cinema, literatura, cheguei a algumas outras conclusões, que venho confirmando, estendendo e escrevendo em trabalhos posteriores: realmente existe um cinema moderno que faz literatura e poesia através das imagens e das palavras, e cujo exemplo mais radical (mas não o único) é Jean-Luc Godard. Outros exemplos, até mesmo óbvios: grande parte da Nouvelle Vague, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman, Jean-Marie Straub e Danielle Huillet, Abbas Kiarostami, Satyajit Ray... 

Esse tema tem ressonância no cinema brasileiro? Que cineastas você destacaria como participantes dessa tradição?

Apresentei um trabalho em outubro, no Memorial da América Latina, em São Paulo, exatamente sobre como se faz literatura no cinema brasileiro. Vou me ater a alguns poucos nomes. Glauber Rocha fez literatura no cinema, e da maior qualidade. Como? Não estou me referindo ao seu romance, Riverão Sussuarana, lançado em 1977, pela Record, enquanto ele ainda estava vivo. Nem ao seu livro Poemas eskolhydos, póstumo, editado pela Alhambra, em 1989. Estou me referindo a Deus e o diabo na terra do sol, esta suntuosa ópera poética. Desde a concepção até a efetiva realização do filme, Deus e o diabo transpira literatura, em todas as sequências, em todos os planos, em todas as cenas, em todos os detalhes. A começar pelos diálogos, que são uma verdadeira partitura verbal, com a fala cadenciada, ritmada quase no metrônomo, de todos seus personagens e com a música das palavras tudo comandando: podemos falar de uma dicção abertamente poética. Nelson Pereira dos Santos foi mais convencional, mas não menos genial: simplesmente adaptou, com a mesma qualidade, a obra-prima de Graciliano Ramos, Vidas secas. Luis Rosemberg tem uma obra que também é escrita com a câmera: Crônica de um industrial, e mais recentemente, O discurso das imagens, Desertos e As últimas imagens de Tebas são filmes soberbos, poesia escrita com palavras e imagens. Um outro que atua nesta área é Ricardo Miranda: seu Djalioh, baseado numa novela juvenil de ninguém menos do que Gustave Flaubert, é o que todas as adaptações deveriam ser e raramente são: tão inteligente, sutil e criativa como a própria obra literária. Ricardo Miranda está prometendo, aliás, um outro filme, baseado noutra novela juvenil de Flaubert.   

Por que, em sua avaliação, não temos hoje revistas e centros de estudos de destaque na crítica cinematográfica, como em outros momentos relativamente recentes da cultura brasileira?

Editar revistas e manter centros de estudos na crítica cinematográfica nunca foi uma tarefa fácil, mas um esforço de poucos e abnegados produtores culturais. Como por exemplo a Revista de Cinema e o CEC, Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais, que sempre tiveram períodos difíceis, quando as suas atividades tinham que ser paralisadas, por falta de dinheiro e condições mínimas. Pode-se dizer, por isso mesmo, que nenhuma dessas atividades teve uma história de vida sem problemas: sempre teve uma fase em que elas estavam fechadas. Não sei se isto é exatamente positivo, mas tudo agora passa pelo computador: filmes que nunca veríamos nas telas, ou então muito dificilmente, estão a um toque de dedo na internet. Igualmente, inúmeras revistas e jornais virtuais (do mundo inteiro, em várias línguas), com crítica e ensaios de cinema, podem ser acessados por qualquer um, a nenhum custo. Isso, por um lado, é muito positivo. Por outro lado, o debate presencial e o filme de celuloide na tela do cinema são uma experiência insubstituível. O ideal era contar com todas estas maneiras de ver, discutir, ensinar e aprender cinema. 

É possível, hoje, com as pressões da indústria e da mídia, fazer poesia no cinema? Que autores você destacaria como herdeiros de Godard, na Europa, nos EUA e no Brasil?

É plenamente possível. A indústria em geral e a indústria cinematográfica em particular sempre existiram, assim como as pressões para a estandardização de todos os produtos e produções. A indústria é necessariamente assim... O que não impediu que sempre existissem poetas e poesia no cinema, desde os seus começos. Basta lembrar os inventores do cinema, os irmãos Lumière, seguidos de perto por Georges Méliès... Neste ponto sou dogmático: basta haver desejo, competência e coragem, e teremos poesia, em qualquer circunstância, mesmo na mais desfavorável. Aliás, diria que os tempos sombrios são os que mais precisam de poesia, e talvez por isso mesmo, os que mais a produzem. Quanto aos cineastas que fazem (ou fizeram, recentemente) um cinema digno de Jean-Luc Godard, eu diria que são Jean-Marie Straub, Theodoros Angelopoulos, Béla Tarr, Jacques Rivette, Wim Wenders (Europa), Jim Jarmusch, Terence Malick, Woody Allen (Estados Unidos), Luís Rosemberg, Ricardo Miranda, Julio Bressane, Andrea Tonacci, Geraldo Veloso, Nelson Pereira dos Santos (Brasil). 

Você concorda que os novos cineastas parecem ter muita cultura visual, mas não o mesmo potencial em termos filosóficos e literários dos artistas de linha godardiana?
Quando me lembro do cinema de Tarantino e de Spielberg, tendo a concordar com você: um conhecimento muito grande do cinema e um brilhantismo visual inegável, mas ao mesmo tempo um pensamento muito raso, para dizer o mínimo. O cinema, as imagens e o visual somente não bastam, e isto está sendo dito por alguém que já foi crítico de cinema por muitos anos e que sempre amou um certo cinema americano (Nicholas Ray, Vidor, Samuel Fuller, Walsh, Preminger), que foi descrito predominantemente como um cinema de imagens, o que não era muito correto: Fuller, por exemplo, era escritor e jornalista, e levou esta capacidade para seus filmes... 
 
O mundo está precisando dos filmes de Godard?

O mundo sempre precisou dos filmes de Godard: altamente inventivo, formalmente, ele foi aquele cineasta que sempre falou da atualidade, fazendo sempre reportagens etnográficas altamente filosóficas e sofisticadas, não só analisando e mostrando os temas mais relevantes de cada momento que viveu e vive, mas muitas vezes antecipando-os. Os melhores exemplos são A chinesa e Week-End à francesa: realizados em 1967, eles antecipavam, com exatidão inacreditável, o que seria o Maio de 68 na França. Além do mais, por definição, ele é um poeta, e os poetas, como disse Ezra Pound, são as antenas da raça. Finalmente, eles são ao mesmo tempo inexplicáveis (por mais explicações que tenhamos sobre suas obras) e insubstituíveis: suas obras sempre pressupõem a liberdade, a participação e a interpretação do público. Talvez seja este, finalmente, o grande segredo de Jean-Luc Godard.

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