sábado, 2 de fevereiro de 2013

Parcerias em surdina(Livros sobre a música brasileira)-João Paulo‏

Livros sobre a música brasileira mostram como a mais popular das artes contribuiu para definir os traços marcantes da nacionalidade, além de abrir diálogo com o mundo 

João Paulo
Estado de Minas: 02/02/2013 

Capa da partitura do samba Olh%u2019Abacaxi!, de F. Soriano Robert, compositor popular pouco lembrado, que teve sua peça citada em O boi no telhado, de Darius Milhaud
‘‘O Brasil tem ouvido musical que não é normal”, cantou Caetano Veloso. Curiosamente, ao saudar nosso talento brasileiríssimo, o poeta o fez numa canção que se chama Love, love, love. É nesse terreno, sempre complexo, que permite desde a exaltação nacionalista até a crítica mais iracunda contra a invasão cultural, passando pelos processos maleáveis de intercessão e antropofagia, que a música brasileira vem se afirmando como espaço de construção da nacionalidade. Somos o que somos, um pouco, por causa da música popular. A música popular é o que é, talvez, porque somos como somos.

A crescente onda de livros sobre a música popular – de biografias a estudos históricos, de análises sociológicas a sínteses jornalísticas bastante informadas – vem construindo um patrimônio de reflexões importantes na linha da chamada “interpretação do Brasil”. 

A contemporaneidade entre a fixação do gênero musical urbano e a República é um exemplo de como a política e o imaginário andam juntos, em processo de diálogo em mão dupla. Quando Chico Buarque compõe Vai passar, o samba-enredo do indivíduo vítima do desamor em meio às demandas da política de uma sociedade em festa/mobilização, dá sequência a uma tradição que merecia ser honrada. 

A estante de livros sobre a música brasileira acaba de ganhar três títulos importantes, de estilos e propósitos distintos. O primeiro deles é Boi no telhado – Darius Milhaud e a música brasileira no modernismo francês, organizado por Manoel Aranha Corrêa do Lago, uma recuperação preciosa de um episódio marcante da história das relações culturais entre o Brasil e a França. 

Outra publicação de cunho histórico é a reedição de Pequena história da música popular segundo seus gêneros, de José Ramos Tinhorão, que estuda as relações entre a música e contexto econômico e social do país. Completando a prateleira, a biografia Divino Cartola, uma vida em verde e rosa, de Denilson Monteiro.


Orquestra e choro


A obra O boi no telhado (Le boeuf sur le toit), de Darius Milhaud (1892-1974), é resultado do encantamento do compositor francês com a música brasileira do começo do século 20. Milhaud, uma das mais importantes personalidades da música do século 20, chegou ao Brasil em 1917, aos 25 anos, para trabalhar como secretário da embaixada francesa no país, conduzida pelo poeta Paul Claudel. Viveu dois anos no Rio de Janeiro, onde se familiarizou com saraus e salas de concerto, mas sem perder o contato com as ruas, em jornadas regadas a samba, tangos e maxixes. O jovem compositor erudito era apaixonado por Ernesto Nazareth, que ele ia ouvir nos cinemas durante a exibição de filmes mudos.

Ao voltar para a França, Milhaud compõe obras inspiradas na música brasileira, como Saudades do Brasil e O boi no telhado, um balé que seria depois desenvolvido cenicamente por Jean Cocteau, com cenário de Raoul Dufy. A peça ganhou o público e chegou a batizar uma boate, que depois se espalharia em franquias pelo mundo. Boi no telhado passou a ser uma expressão ligada ao jazz e à improvisação. 

Em termos musicais, Boi no telhado era uma hábil compilação de 14 temas da música popular brasileira, citando compositores como o próprio Nazareth, ao lado de Chiquinha Gonzaga, Marcelo Tupinambá, João de Souza Lima, Catulo da Paixão Cearense, Alberto Nepomuceno e José Monteiro, numa coleção de ritmos e harmonias, citações diretas e indiretas, música local e composição de vanguarda.

A peça gerou polêmica. Alguns críticos não entenderam a homenagem (nem a forma habitual de utilização de material já composto na suíte) e acusaram o músico de plágio. E é para recuperar a riqueza dessa história que o pesquisador Manoel Aranha Corrêa do Lago organizou o volume lançado pelo Instituto Moreira Salles.

A publicação, com lupa histórica e musicológica, reúne seis ensaios escritos por especialistas do Brasil, França, Estados Unidos e Itália. Neles estão analisadas desde questões técnicas referentes à estrutura da composição, até um relato saboroso do clima cultural do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século 20. Há ainda um levantamento detalhado de cada um dos compositores brasileiros citados, com pequenas biografias, e até uma reflexão original sobre a origem do swing. Completam o volume dois textos de época, um retrato do Rio de Janeiro por Paul Claudel e a pantomima criada por Jean Cocteau para a estreia parisiense do Boi. 

Para quem ficou com água na boca, a edição traz um disco com duas gravações de O boi no telhado, uma com orquestra que segue a partitura sinfônica de Darius Milhaud, com regência de Kent Nagano, e outra arranjada para formação de choro, com o conjunto Caldereta Carioca. As duas são ótimas.


Samba e sociedade

A reedição da Pequena história da música popular segundo seus gêneros, do historiador José Ramos Tinhorão, é um livro que merece atenção. O autor iniciou sua carreira como jornalista e com o tempo se tornou o mais importante pesquisador da história da música popular brasileira, sobre a qual já escreveu 25 livros, recuando sua pesquisa às origens portuguesas da modinha. O que Tinhorão traz de informação, no entanto, nunca retirou dele a pecha de passadista, inimigo da guitarra elétrica, do rock e da bossa nova.

Somadas as duas partes, o melhor é sempre deixar o preconceito de lado e ir ao texto. Autor marxista, Tinhorão tem sempre o interesse de contextualizar suas análises sobre a história da música a partir da infraestrutura social e econômica. 

Pequena história… é sua obra mais conhecida, pela abrangência temporal (na sétima edição vai da modinha à lambada) e pela diversidade de gêneros. Cada um dos 21 capítulos trata de uma manifestação: modinha, lundu, maxixe, tango brasileiro, choro, marcha, samba, marcha-rancho, frevo, samba-canção, samba-choro, samba de breque, samba-enredo, música sertaneja, baião, bossa nova, canção de protesto, tropicalismo, gêneros nacionalizados, guarânia brasileira e lambada.

Se nos primeiros capítulos avulta a pesquisa histórica e a busca do contexto, com muita informação garimpada em primeira mão, não obstante algum esquematismo sociológico (sobretudo na análise da urbanização da canção popular), à medida que o livro avança para os gêneros mais recentes a mão do autor ganha em juízos menos científicos e mais ideológicos. Tinhorão não aceita a parceria entre artistas da classe média e criadores “das camadas mais baixas do povo” presente na bossa nova, que para ele é apenas jazz adaptado aos trópicos; vê oportunismo na internacionalização proposta pelo tropicalismo; e considera politicamente gratuita “a insistência em cutucar o poder militar com a vara curta das canções de protesto”.

Livro de referência, Pequena história… é um Tinhorão autêntico. E ninguém pode acusar o historiador de não prezar sua autenticidade. Para ler, aprender e discordar, o que de resto é o destino de todos os livros que valem a pena.

Por fim, merece atenção a biografia sintética de Cartola escrita por Denilson Monteiro, que já havia publicado o original e bem pesquisado A bossa do lobo: Ronaldo Bôscoli. O livro sobre Angenor de Oliveira, o Cartola, traz informações sobre a vida e a obra do compositor, conta histórias sobre as canções e confirma a afirmação do próprio sambista de que sua vida era um filme de mocinho e que ele só venceria no final. 

Além dos sambas, Divino Cartola, uma vida em verde e rosa se inspira nas histórias de vida do compositor, suas dores de amor, a boemia, a criação da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, as amizades, a experiência como proprietário do Bar Zicartola ao lado da mulher, a juventude como pedreiro, a elegância natural. Uma vida que daria um samba. Mais que isso, um buquê de rosas que cantam, se as rosas falassem. Para completar, a edição dá direito a registro inédito da última apresentação do sambista.


O BOI NO TELHADO – DARIUS MILHAUD E A MÚSICA BRASILEIRA NO MODERNISMO FRANCÊS
• Organizado por Manoel Aranha Corrêa do Lago
• Instituto Moreira Salles, 304 páginas, R$ 60


PEQUENA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA SEGUNDO SEUS GÊNEROS
• De José Ramos Tinhorão
• Editora 34, 352 páginas, R$ 49

DIVINO CARTOLA – UMA VIDA EM VERDE E ROSA

• De Denilson Monteiro
• Editora Casa da Palavra, 208 páginas, R$ 80

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