Timbuktu pode ser qualquer lugar
É sempre o mesmo fenômeno: a religião deixa de ser a lei de Deus para ser a lei de todos
Timbuktu é uma cidade no centro do Mali, na entrada do Deserto do Saara. Originou-se no século 5º e teve seu apogeu, como entreposto comercial e centro de difusão da cultura islâmica, nos séculos 15 e 16. Em 1988, a Unesco incluiu Timbuktu na lista do Patrimônio Comum da Humanidade.Em abril de 2012, a cidade foi invadida e caiu sob o controle do Movimento Nacional para a Liberação do Azawad e do Ansar Din, grupos fundamentalistas armados, que instituíram observância estrita da lei religiosa islâmica. Proibiram qualquer tipo de música, destruíram monumentos e documentos centenários que consideraram blasfemos e apedrejaram mães solteiras.
Nos últimos dias, após dez meses de ocupação, as autoridades do Mali, com a ajuda de tropas francesas, conseguiram retomar o controle da cidade. A lei nacional foi reinstituída, e a população de Timbuktu pode voltar a ouvir música.
O processo de controle do governo pela religião, que, em Timbuktu, sucedeu de forma brusca e radical, ocorre em muitas outras partes do mundo, de modo mais lento e sutil, mas igualmente insidioso.
É sempre o mesmo fenômeno: a religião querendo deixar de ser a lei de Deus para ser a lei de todos.
Em vários países, grupos religiosos buscam articular-se politicamente. Partidos ultraortodoxos detêm 18 dos 120 assentos do Parlamento de Israel. O partido islâmico da Irmandade Muçulmana controla o governo do Egito.
Ao mesmo tempo, fundamentalistas assumem ares de superioridade moral e se arrogam a missão de impor, ainda que de forma violenta, uma moralidade baseada na fé, na qual a racionalidade não tem lugar.
O radical em Jerusalém que cospe na garota de oito anos porque ela não está vestida decentemente é o mesmo que, no Brasil, destrói o centro religioso de matriz africana e, no Paquistão, alveja a cabeça da menina que quer acesso à educação. Desqualifica-se a diversidade com argumentos que remontam à Idade Média e às Guerras Santas.
Na democracia, há espaço para todo tipo de expressão, inclusive as radicais. Mas não para a intolerância. A maioria governa, mas as minorias devem ter direitos assegurados. É essa a regra de ouro, é o que faz o sistema democrático funcionar. Ninguém é melhor que ninguém. Todos são iguais perante a lei.
Garantir que, no tratamento da coisa pública, não haja lugar para proselitismo religioso é uma tarefa difícil, mas que se impõe aos líderes políticos e aos defensores da democracia.
Em seu segundo discurso de posse, o presidente dos EUA, Barack Obama, comentou sobre as dificuldades de se negociar com quem se considera emissário direto de Deus.
A história da humanidade está repleta de exemplos negativos da influência da religião no Estado.
A separação entre igrejas e governo é salvaguarda da democracia e uma conquista valiosa da civilização. A época em que religião e Estado se misturavam já passou. Os tempos da Santa Inquisição não deixaram boas lembranças. Ninguém quer voltar para lá.
ALEXANDRE VIDAL PORTO é escritor e diplomata. Este artigo reflete apenas as opiniões do autor.
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