domingo, 3 de fevereiro de 2013

O submarino verde [Leonilson] - João Pedrosa

folha de são paulo

ARQUIVO ABERTO
Memórias que viram história
São Paulo, anos 1980
JOÃO PEDROSAConheci José Leonilson Bezerra Dias (1957-93) em 1982, durante sua primeira exposição em São Paulo, na galeria Luisa Strina. Ele me convidou a visitá-lo e imediatamente iniciamos uma amizade que durou até sua morte.
As políticas e poéticas ilustrações na Folha, os artistas de que gostava, os amigos, as festinhas, a feitura diária de sua obra, as viagens, exposições, colecionadores, marchands: tudo isso compunha o mundo particular de Leo, que era habilmente cultivado, mas que às vezes ruía de súbito.
Numa dessas ocasiões, ele me ligou chorando. Corri então até a sua casa na Vila Mariana, levando o melhor exemplar da coleção de brinquedos vintage que tinha: um submarino de metal movido a corda. O brinquedo inglês, dos anos 1940, era inspirado no Nautilus, de "20 Mil Léguas Submarinas". Numa visita a minha casa, Leonilson tinha amado o brinquedo.
Submarino dado, lágrimas secas: tão rapidamente como afundava o mundo de Leo na depressão, se dava sua passagem para a alegria, súbita e impressionante. Fiquei feliz, com um sentido de dever cumprido. Quando, na saída, comentei sua boa mudança, ele disse, candidamente, com um tom entre a confissão e a dissimulação: "Na verdade, eu só estava triste porque queria tanto o submarino".
Assim era a personalidade única de Leonilson. Sua alma arraigada na ancestralidade nordestina, sua lírica, sua poesia, seu afeto, seu talento e seu cosmopolitismo se combinavam a manifestações bíblicas de ira, falso moralismo, indignações e brigas ideológicas que não duravam 24 horas. Outros causos como este, oscilando sempre entre o divino e o ridículo, ainda geram comentários e risos incontidos quando lembrados pelo seu grande círculo de amigos.
O indignado moral, defensor dos fracos e oprimidos, não importando se era fútil ou fundamental sua demanda, também era capaz de sugerir que restaurantes tivessem pelourinhos para açoitar os garçons, que ele constituía, quase todos, em seus inimigos mortais.
Nos almoços semanais, aos quais compareciam Leda Catunda e Sérgio Romagnolo, Jan Field e Eduardo Brandão, Adriano Pedrosa, Fábio Cardoso, Daniel Senise, Caetano de Almeida e Edgard de Sousa, Isa Pini e Ana Tavares, apostávamos em segredo a que altura da refeição ele encrencaria com o garçom. Quase sempre acertava quem dizia que já na entrada.
Leo rapidamente conseguiu visibilidade internacional e reconhecimento por parte dos colecionadores, um sucesso merecido. Sua arte sedutora, inesgotável, em muito se deveu ao seu caráter curioso de artista plástico profissional e intelectual amador.
Ele era um rio de informações, sensibilidade e poesia. Sempre me indago como ele estaria, como seria hoje, como seria sua obra, que lugar teria no mercado; como seria sua vida amorosa, sua relação com seus marchands; o que ele acharia da internet, das redes sociais, da tecnologia, dos novos desafios do mundo, da ecologia, da política, da crise, da arte, de tudo.
Se o HIV o tivesse atingido alguns anos mais tarde, o coquetel poderia ter feito dele um sobrevivente. Mas sobreviver talvez não bastasse para uma alma como a sua, maior do que a vida. Certa vez, no princípio de sua fama, eu lhe disse, brincando: "Você é o Volpi da nossa geração". Ao que ele respondeu, entre irritado e divertido: "Mas eu quero ser o Picasso!".

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