domingo, 3 de fevereiro de 2013

Barrigas de aluguel

folha de são paulo

Índia se transforma em meca da gravidez terceirizada; mulheres de países ricos recorrem a clínica em que nasce um bebê a cada três dias
PATRÍCIA CAMPOS MELLOENVIADA ESPECIAL A ANAND, ÍNDIA"Queridos amigos, depois de esperarmos muito, nosso filho chegou: Ceron Emile Kiran Ouellette nasceu no dia 29 de novembro de 2012, com 3,3 quilos."
Com esse e-mail, a canadense Barbara Ouellette, de 53 anos, pôs fim a uma jornada de 30 anos de tentativas frustradas para engravidar. Seu filho, Ceron, nasceu da barriga da indiana Adono em Anand, cidade de 200 mil habitantes no oeste da Índia.
Ceron foi concebido com o óvulo de uma doadora indiana e o espermatozoide do marido de Barbara, Michel. O embrião foi implantado na barriga de Adono, uma indiana de 37 anos que recebeu US$ 7.000 pela gestação.
Anand é conhecida como a capital mundial da barriga de aluguel. É lá que fica a Clínica Akanksha, da médica Nayana Patel, onde nasce um bebê de barriga de aluguel a cada três dias. Desde 2004, 584 bebês de "mães de aluguel" nasceram na clínica.
Grande parte dos casais que buscam ajuda de Nayana é de americanos, britânicos, japoneses e canadenses.
Patel oferece o pacote completo: óvulos de doadora para quem não consegue conceber com os próprios, inseminação artificial e as "barrigas de aluguel" -as grávidas vivem todas juntas em uma casa, para que a médica possa acompanhar a alimentação e fazer os exames.
O grande chamariz é o custo. Enquanto nos EUA ter um filho com barriga de aluguel não sai por menos de US$ 60 mil, na Índia custa a partir de US$ 20 mil. No Brasil, cada tentativa de fertilização sai entre R$ 15 mil e R$ 20 mil. Cessão de útero e doação de óvulos só podem ser feitas sem fins comerciais.
A Índia se tornou uma meca para o "outsourcing" de gravidez. Há cerca de 1.500 clínicas de reprodução assistida no país, que movimentam US$ 2 bilhões por ano.
Cerca de 7% dos casais do mundo não conseguem ter filhos. São pessoas como Barbara, que passou por 12 tentativas de inseminação artificial e teve vários abortos. Tentou adotar, mas, aos 50 anos, era considerada muito velha. Finalmente, veio à Índia.
"No começo, não conseguia suportar a ideia de outra mulher carregar meu filho na barriga", disse Barbara. "Mas essa era a única chance de ter um filho com algum laço biológico com meu marido", acrescentou.
Barbara, que é professora de música, está no hotel Rama -onde ficam todas as novas mamães gringas com seus bebês- esperando a papelada da Embaixada do Canadá sair para levar seu filho para casa, como cidadão canadense. Ela adaptou no banheiro do quarto um esterilizador de mamadeira e uma banheira.
Duas vezes por dia, a "mãe de aluguel", Adono, vem para amamentar Ceron. A prática não é usual. A amamentação pode criar mais apego da mãe de aluguel ao bebê.
Os olhos de Adono se enchem de lágrimas quando ela fala em Ceron. "Vai ser difícil. Carreguei na minha barriga por nove meses e vou ter que me separar dele", diz.
"Mas fiz pelos meus três filhos." Com os US$ 7.000 que vai receber, vai pagar a faculdade dos dois mais velhos.
Essa é a segunda vez que Adono "trabalha" como barriga de aluguel. Da primeira vez, a indiana teve gêmeos para um casal de americanos. Recebeu US$ 8.000 e pôde construir uma casa. Seu marido ganha US$ 60 por mês em um laboratório.
No seu vilarejo, ninguém sabe. "Eles não entendem que é um procedimento médico, acham que é imoral, que é preciso fazer sexo com outro homem."
"As pessoas me diziam que eu estava me aproveitando de pobres do terceiro mundo", diz Barbara. "Eu considero uma troca justa: Adono me deu a coisa mais importante da minha vida, e ela recebeu um dinheiro que nunca conseguiria ganhar."
Sentada ao lado da foto autografada que ganhou da apresentadora americana Oprah Winfrey, Nayana é incisiva. "Imoral é viver uma morte lenta de pobreza como essas mulheres vivem."
Atualmente, a casa das grávidas abriga 72 mulheres. A Folha conversou com muitas delas. Elas vão para a casa no início da gravidez. Lá, recebem medicações, três refeições por dia e aprendem bordado. Visitas, só aos domingos.
Para ser mãe de aluguel, é preciso ter entre 21 e 35 anos, com poucas exceções, e já ter filhos. Elas podem ter no máximo cinco gestações, sendo três de aluguel.
A boia-fria Bhavna, de 35 anos, está em sua segunda gravidez de aluguel de gêmeos. Já tinha três filhos. Ganhava US$ 40 por mês, e o marido vendia sangue para complementar a renda.
"É dever das mulheres ter filhos", diz ela, pragmática.
O dinheiro que ela recebeu equivale a quatro anos de salário da sua família.

Ao menos 3 casais brasileiros foram ao país
DA ENVIADA A ANANDPelo menos três casais brasileiros estiveram na Índia no ano passado para ter bebês com barriga de aluguel.
O piloto Carlos e sua mulher, Elisabeth, de 39 anos, de Campinas (nomes trocados), buscaram sua filha em novembro. Eles fizeram duas tentativas de inseminação artificial na Clínica Akanksha. A segunda deu certo. O embrião foi implantado no útero de uma mãe de aluguel.
"Nossa filha é um presente, nossas famílias e amigos estão maravilhados com a solução que encontramos", diz Elisabeth, que não podia ter filhos porque teve que retirar um ovário e uma trompa.
A criança saiu da Índia com passaporte brasileiro, com Elisabeth e Carlos como pais biológicos.
No Brasil, o "empréstimo de útero" só pode ser feito por parentes até segundo grau ou por pessoas sem grau de parentesco com autorização do Cremesp. Mas não pode envolver nenhum pagamento.
"O fato de não poder ser feita a doação de óvulos ou cessão de útero no Brasil é um gargalo enorme; há uma fila de mulheres mais velhas, que precisariam de doação de óvulos", diz Edson Borges, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida.
Borges é crítico em relação à prática. "Não se trata da compra de um serviço médico, mas sim de um serviço aviltante."
Na Índia, não há regulamentação para o setor. Um projeto de lei está em estudo, mas não se sabe quando vai entrar em vigor.
"Não se pode transformar um problema médico, a infertilidade, em uma oportunidade comercial", diz Ranjana Kumari, diretora do Centre for Social Research. "A mãe de aluguel é o elo mais fraco -ela fica com a menor parte do dinheiro, e muitas sofrem hostilidade dos maridos."
Quando a mãe de aluguel sofre um aborto, recebe menos. Na clínica de Nayana Patel, se abortar antes do terceiro mês, recebe US$ 600; antes de seis meses, US$ 1.200; com mais de seis meses, o total.
Há duas semanas, entrou em vigor uma nova regra na Índia que proíbe a vinda de casais gays e mães solteiras para ter bebês de barriga de aluguel. Só casais com mais de dois anos de casamento podem se candidatar a visto médico. As clínicas tentam flexibilizar a norma.

    ANÁLISE
    Prática ainda é motivo de polêmica pelo mundo
    CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULOPrática em vigor há quase 30 anos, a barriga de aluguel ainda desperta polêmica em todo o mundo justamente por não haver consenso sobre ela.
    À luz da bioética, o aluguel de útero é tido como inaceitável. Autores como Leocir Pessini acreditam que a prática seja "imoral e ilícita" porque leva à "coisificação" do ser humano, violando a sua dignidade.
    Do ponto de vista médico, não haveria imoralidade quando o objetivo é ajudar de alguma forma pessoas a realizar o sonho de ter uma família. Ou seja, seria ético tornar possível esse sonho.
    Sob o aspecto do direito, segue a legislação de cada país. Na Europa, países como Itália, França e Alemanha vetam a barriga de aluguel. Na Ucrânia e em alguns Estados americanos, o comércio de útero é legal.
    No Brasil, não existe legislação que normatize ou regule a questão. Uma resolução do Conselho Federal de Medicina criou normas para o procedimento, mas não tem força de lei para solucionar possíveis conflitos.
    E a única forma de regular tudo isso é por meio de legislação. Do contrário, corremos o risco de enfrentar situações como na Tailândia.
    Lá, a polícia desbaratou uma quadrilha que vendia pela internet o serviço de barriga de aluguel e mantinha as grávidas confinadas em um sítio em Bancoc.

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