ENTREVISTA - ALICE SANT'ANNA
Um iceberg de sentidos
Questões poéticas sobre fatos triviais e vice-versa
ARMANDO FREITAS FILHO
A seguir, leia a conversa que travaram os dois poetas cariocas.
Alice Sant'Anna - Machuca deixar crescer. Cabelo pesa.
Não comprar antes da moça ao lado um vestido de tule illusion champagne, que esvoaça no corpo dela, é irreparável?
É irreparável. Os vestidos bonitos demais não podem ser muitos no armário, precisam ser raros. E não devem, obviamente, ser usados todos os dias. Tule illusion champagne, com um nome desses, só tem graça depois de muita calça jeans.
Só podendo escolher um e nenhum outro: quem você chamaria para ver o rabo da baleia? Carlos Drummond ou João Cabral?
Essa é impossível, levo os dois comigo.
O fantasma de Ana Cristina César existe?
Existe, mas não dá susto.
Pudim de leite engorda?
Pudim, não. Culpa engorda.
Já brigou, ou pelo menos teve vontade de brigar com algum poeta para valer, com ódio, com a caneta nos dentes, o dedo na cara, com vontade de matar o desgraçado?
Só gosto de quem gosta de mim.
Neste segundo pingue-pongue que nós jogamos, a sua rebatida, a sua cortada estão mais difíceis do que no primeiro?
É um pouco diferente: no nosso livro, eu cortava, mas também sacava. Aqui eu só rebato.
"Rabo de Baleia" não é um título usual para livro de poesia. O que fez você escolher esse nome? Foi pela surpresa?
É como enxergar só a ponta e deduzir todo um iceberg: ver o rabo de baleia basta para imaginar que existe um bicho inteiro debaixo d'água. A gente está sempre tentando agarrar o rabo da baleia, mas ele escapa, é infalível. Quando dá a sorte de aparecer, é rápido demais, dura poucos segundos, como um pequeno milagre.
IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
Dois poemas
ALICE SANT'ANNA1.
o barulho ao lado
uma rachadura é provável
no prédio recém-construído
novinho em folha
apartamentos comprados
na planta já tinha gente vivendo
e todos tiveram que desocupar
se mudar pra casa da tia
voltar pra casa da mãe
cada um se arranja como pode
diante da ameaça do tombo
mas eis que todo dia quando caminha por perto
acha que é justo quando caminha por perto
que o prédio vai ruir de vez
se não ruiu até agora se não
desabou completamente
não encheu a gávea de poeira de asfalto
de sofás novos e uma escrivaninha que alguém
herdou da avó do recife
da geladeira que guarda um último caqui
na caixa e um presente da maison du chocolat
o laço que não romperia com a queda
os bombons ainda intactos
quando chega em casa já de noite
sente muito frio
calça meias nos pés e durante o sono
sem perceber tira as meias com muito calor
sonha com montanhas que desmoronam em série
sempre de dentro pra fora
2.
deitado com o dedo na boca
o sorriso invertido
curvado como uma montanha
a pele da perna uma cédula
gasta e seca
todos os dias rigorosamente iguais
banheiro, visitas, ampolas de sangue
às vezes tem mordomias como
um pedaço de pão ou uma fruta
doces nem pensar
da janela passa uma nuvem de carros
um táxi amarelo convida
a ir a qualquer lugar
sem previsão de alta o táxi é mais
miragem um filme
na televisão aquele programa da tv5
sobre casas em paris sem saneamento
pessoas que moram hoje, você acredita?, em quartos
sem janelas, apartamentos no sexto andar
sem elevador, como será que fazem para subir
com a água? não tomam banho, naturalmente
depois se cansa da conversa
a nuvem se torna mais espessa
na hora do rush o táxi não tem serventia
se não puder tomar o caminho que leva
ao ponto mais alto
de onde se vê a curvatura da terra
- fonte:folha de são paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário