domingo, 10 de março de 2013

Dois Poemas e uma entrevista com Alice Sant'anna


ENTREVISTA - ALICE SANT'ANNA
Um iceberg de sentidos
Questões poéticas sobre fatos triviais e vice-versa
RESUMO Em 1953 Vinicius de Moraes fez, para o semanário "Flan", do jornal "Última Hora", entrevista de perguntas e respostas improváveis com o músico Jayme Ovalle. Nesses moldes, Armando Freitas Filho conversa com a também poeta Alice Sant'Anna, autora de "Rabo de Baleia", que sai no dia 14 pela Cosac Naify (64 págs., R$ 28).
ARMANDO FREITAS FILHO
A seguir, leia a conversa que travaram os dois poetas cariocas.
-
Armando Freitas Filho - Cortar o cabelo machuca, Alice?
Alice Sant'Anna - Machuca deixar crescer. Cabelo pesa.
Não comprar antes da moça ao lado um vestido de tule illusion champagne, que esvoaça no corpo dela, é irreparável?
É irreparável. Os vestidos bonitos demais não podem ser muitos no armário, precisam ser raros. E não devem, obviamente, ser usados todos os dias. Tule illusion champagne, com um nome desses, só tem graça depois de muita calça jeans.
Só podendo escolher um e nenhum outro: quem você chamaria para ver o rabo da baleia? Carlos Drummond ou João Cabral?
Essa é impossível, levo os dois comigo.
O fantasma de Ana Cristina César existe?
Existe, mas não dá susto.
Pudim de leite engorda?
Pudim, não. Culpa engorda.
Já brigou, ou pelo menos teve vontade de brigar com algum poeta para valer, com ódio, com a caneta nos dentes, o dedo na cara, com vontade de matar o desgraçado?
Só gosto de quem gosta de mim.
Neste segundo pingue-pongue que nós jogamos, a sua rebatida, a sua cortada estão mais difíceis do que no primeiro?
É um pouco diferente: no nosso livro, eu cortava, mas também sacava. Aqui eu só rebato.
"Rabo de Baleia" não é um título usual para livro de poesia. O que fez você escolher esse nome? Foi pela surpresa?
É como enxergar só a ponta e deduzir todo um iceberg: ver o rabo de baleia basta para imaginar que existe um bicho inteiro debaixo d'água. A gente está sempre tentando agarrar o rabo da baleia, mas ele escapa, é infalível. Quando dá a sorte de aparecer, é rápido demais, dura poucos segundos, como um pequeno milagre.

    IMAGINAÇÃO
    PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
    Dois poemas
    ALICE SANT'ANNA
    1.
    o barulho ao lado
    uma rachadura é provável
    no prédio recém-construído
    novinho em folha
    apartamentos comprados
    na planta já tinha gente vivendo
    e todos tiveram que desocupar
    se mudar pra casa da tia
    voltar pra casa da mãe
    cada um se arranja como pode
    diante da ameaça do tombo
    mas eis que todo dia quando caminha por perto
    acha que é justo quando caminha por perto
    que o prédio vai ruir de vez
    se não ruiu até agora se não
    desabou completamente
    não encheu a gávea de poeira de asfalto
    de sofás novos e uma escrivaninha que alguém
    herdou da avó do recife
    da geladeira que guarda um último caqui
    na caixa e um presente da maison du chocolat
    o laço que não romperia com a queda
    os bombons ainda intactos
    quando chega em casa já de noite
    sente muito frio
    calça meias nos pés e durante o sono
    sem perceber tira as meias com muito calor
    sonha com montanhas que desmoronam em série
    sempre de dentro pra fora
    2.
    deitado com o dedo na boca
    o sorriso invertido
    curvado como uma montanha
    a pele da perna uma cédula
    gasta e seca
    todos os dias rigorosamente iguais
    banheiro, visitas, ampolas de sangue
    às vezes tem mordomias como
    um pedaço de pão ou uma fruta
    doces nem pensar
    da janela passa uma nuvem de carros
    um táxi amarelo convida
    a ir a qualquer lugar
    sem previsão de alta o táxi é mais
    miragem um filme
    na televisão aquele programa da tv5
    sobre casas em paris sem saneamento
    pessoas que moram hoje, você acredita?, em quartos
    sem janelas, apartamentos no sexto andar
    sem elevador, como será que fazem para subir
    com a água? não tomam banho, naturalmente
    depois se cansa da conversa
    a nuvem se torna mais espessa
    na hora do rush o táxi não tem serventia
    se não puder tomar o caminho que leva
    ao ponto mais alto
    de onde se vê a curvatura da terra
      fonte:folha de são paulo

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