Valor Econômico - 25/03/2013
Li com atenção muito do que foi escrito sobre o novo papa, de quem nada
sabia até sua escolha. Contra ele, o que me impressionou foram os textos
de Horacio Verbitsky, jornalista argentino que realizou farta pesquisa
sobre a ditadura em seu país e que acusa Jorge Bergoglio de vínculos
pouco inocentes com o regime militar. Mas não é por esta via que vejo o
futuro da Igreja sob o papa Francisco.
A Igreja Católica é a
organização com maior sabedoria prática que existe, elaborada ao longo
de 17 séculos - desde que o imperador Constantino lhe deu a proeminência
no Império Romano. Seu futuro passa menos pela biografia do novo
pontífice, penso eu, do que pela história da Igreja; para não ir longe
demais, me limitarei aos últimos 50 anos - o período em que a Igreja se
reconciliou com o mundo moderno, que em 1864 Pio IX tinha fulminado no
seu temível Syllabus.
Pio XII, que reinou de 1939 a 1958, foi o
Brejnev do catolicismo: engessou-o a mais não poder. Foi omisso com os
nazistas. Em sua época, havia forte prevenção contra outras religiões.
Mas ele foi sucedido por um dos melhores papas da história. João XXIII
abriu o diálogo com as demais religiões, cristãs ou não. Adotou a missa
nas diversas línguas, para os fiéis entenderem o que o culto
significava. Não fosse ele, a Igreja teria desabado. Mas faz parte da
Igreja Católica ser capaz, quando precisa, de ter o dirigente de que
precisa.
Desde 1958 e deixando de lado o breve papa João Paulo I,
tivemos três papas notáveis - e só um fracassado. Paulo VI, menos
carismático que João XXIII, consolidou as reformas iniciadas por ele, o
assim-chamado "aggiornamento". A partir de 1978, João Paulo II mudou o
rumo da Igreja, esvaziando a Teologia da Libertação, desautorando o
clero e os leigos de esquerda, agindo decididamente para a queda do
comunismo - mas também criticou ditaduras de direita, como a brasileira.
Foram três papas que marcaram época.
Já Bento XVI foi o
fracasso. Representava a continuidade, colaborador que foi de João Paulo
II. Mas não só carece de carisma como não gerou ações marcantes em seu
pontificado. Infelizmente, para um dos papas mais intelectualizados que
já houve, seu tempo talvez seja lembrado sobretudo pela questão da
pedofilia. Esteve constantemente sob ataque e, se teve o mérito de não
reagir de forma agressiva (mas como poderia o papa, hoje um líder
espiritual sem poder temporal, agredir?), não enfrentou as questões que
foram surgindo. Em vez de uma Igreja ativa, engajada, como tivemos de
1958 a 2005, vimos um Vaticano tímido, que mais se defendia do que
propunha. Não espanta que tenha dado o passo, raríssimo na história, de
renunciar. Não sei se foi docemente constrangido ou se a decisão foi
apenas pessoal; mas sua retirada tem toda a lógica. A mesma lógica que
tem sua sucessão por alguém que pode ter sido omisso em relação à
ditadura argentina, mas cuja ação e retórica estão voltadas aos pobres.
Francisco
assume a Santa Sé com uma agenda carregada. Em alguns temas, pouco terá
a dizer. Não imagino a Igreja admitindo o aborto ou o casamento gay.
Mas poderá aceitar as células-tronco, a ordenação de mulheres, o fim do
celibato clerical. Pode reduzir a veemência contra a homossexualidade. A
seu favor, a Igreja tem o fato de que o dossiê pedofilia está
encaminhado. A mancha ficou com Bento XVI, mas se tornou inadmissível
abafar casos de padres pedófilos. Contudo, a ênfase do pontificado
poderá estar nos pobres. Essa foi a pauta principal do clero dito de
esquerda, cobrindo muito da ação pastoral sob João XXIII e Paulo VI. Foi
o que João Paulo II abafou, reduzindo por exemplo a ação das
Comunidades Eclesiais de Base, que cumpriram destacado papel na América
Latina. Uma retomada da questão pode sinalizar um novo giro na ação da
Igreja, mas diferente das décadas de 1960 e 1970.
Isso, por
várias razões. Mudou a pobreza. Mudou a esquerda. A pobreza é menor que
no passado. Não foi só no Brasil que os percentuais de pobres e de
miseráveis despencaram. O fenômeno é abrangente, quase mundial. Se a
realidade da pobreza se modificou, o empenho em enfrentá-la também se
ampliou. Mudou a direita. Hoje, seria difícil caracterizar a direita
liberal pelo empenho em manter a pobreza. Não é contra a desigualdade
social, mas não vê graça na pobreza, menos ainda na miséria. Remédios
para a pobreza podem ser diferentes - maior ação do Estado, à esquerda,
mais empreendedorismo, à direita - mas são mais numerosos do que no
passado e granjeiam maior apoio político.
Também mudou a
esquerda. Hoje, boa parte da América Latina tem governantes, eleitos, de
esquerda. Excetuando a Venezuela, em nenhum caso os Estados Unidos
apoiaram uma ação violenta para derrubá-los. E eles aprenderam, com o
fracasso do golpe de 2002 em Caracas. Essa esquerda eleita, também, em
que pese a retórica de Hugo Chávez, é bem menos radical do que a dos
anos 1960. Dilma Rousseff afirma desejar que o Brasil se torne "um país
de classe média". É uma proposta antimarxista. Não haveria nada que os
rebeldes dos anos 1960 repudiassem mais, porque considerariam esse
projeto uma forma - talvez eficaz - de conter revoltas radicais.
O
que pode fazer o papa, neste quadro? Bento XVI era uma figura
anacrônica. Já um papa de país empobrecido, sorridente, que a seu modo
procurou sepultar os fantasmas da ditadura sanguinária que assolou a
Argentina, pode ter por meta acalmar a agenda "de costumes" da Igreja e
retomar a agenda "social" - leia-se, de combate à miséria. Nada disso
seria uma revolução. Mas poderia distender os espíritos, o que Ratzinger
não soube fazer.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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