JORGE CLAUDIO RIBEIRO
O papa tem corpo
Daqui para a frente, todos os pontífices terão oficialmente um corpo, serão mortais. Sê, pois, bem-vindo à raça humana, "herr" Joseph
"... Para governar a barca de são Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor tanto do corpo como do espírito; vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de tal forma que hei de reconhecer minha incapacidade para exercer bem o ministério que me foi encomendado."
Essa foi uma das mais revolucionárias declarações deste início de século. Ao anunciar sua renúncia, Bento 16 -agora papa emérito, recolhido em Castel Gandolfo- manifestou uma constatação que, embora óbvia, tomou de surpresa a tantas pessoas (dentre as quais não me incluo) mundo afora.
Que constatação foi essa? Que, como todos os seres vivos, também ele tem/é um corpo. Tal como você, eu, tal como Jesus. A corporeidade é nosso inarredável ponto de partida, pela qual somos sensíveis, relacionais e históricos.
Descer do pedestal talvez tenha sido penoso para Sua Santidade, que passou boa parte de sua vida olhando para a corporeidade alheia, em geral nela apontando o que considera mazela e desvio. Enquanto isso, instalou-se numa platônica torre de marfim em que manejava com maestria ideias e doutrinas distantes dos principais dilemas dos companheiros e companheiras de humanidade.
Eis que -à semelhança de casais homossexuais, usuários de camisinha e de anticoncepcionais, perpetradores e vítimas de pedofilia, padres ansiosos por casar, mulheres com vocação ao sacerdócio, jovens engolfados em aluvião hormonal e todas as demais pessoas- o papa parece exclamar: "Olhem, tenho um corpo!". E poderia acrescentar: "Estou com idade avançada. É difícil compreender isso?".
É, sim, e vamos demorar a interpretar esse gesto, ainda mais que, nas aparições posteriores, Bento fez alusões cifradas à hipocrisia, à divisão na igreja, a águas agitadas e a ventos contrários. A que, ou quem, se referia, concretamente?
Outro aspecto da corporeidade papal: velhice, dor e doença são sinais de finitude, mas também fontes de iluminação (lembro-me do príncipe Sidarta). Mesmo que os teólogos elaboradores de dogmas insistam que sumos pontífices são infalíveis (ok, na doutrina católica), no momento em que as articulações doem, a próstata incha e dificulta o singelo urinar, o coração exige ajuda tecnológica e uma periódica troca de pilhas, e isso tudo desemboca em invencível fadiga, então é que se vê que papas são falíveis, sim, num nível mais elementar que o doutrinal.
Contra a crença que os curiais tentaram incutir no final da vida de João Paulo 2º -agonia exposta em praça pública!-, o papa não é um holograma, um ectoplasma, um semideus ou um símbolo. Não, ele só se torna significativo quando assume radicalmente nossa comum condição humana: para dar esse passo, Bento 16 recebeu uma ajuda do próprio corpo.
A abdicação ao trono papal só pode ser considerada grandiosa ou profética porque ocorreu num ambiente enrijecido. Nas modernas corporações e instituições políticas, a troca de poder é esperada e desejável. Comparando, piscar o olho não é digno de comemorações, a não ser que ocorra num paciente após coma prolongada. Essa renúncia foi um sinal de alento, mas mostrou o nível de doença na cúpula católica.
Agora, a boa notícia: com seu gesto, o papa emérito se situa no meio de nós. Daqui para a frente, todos os pontífices terão oficialmente um corpo, serão mortais como os demais seres vivos. Sê, pois, bem vindo à raça humana, herr Joseph. Nós amorosamente te abraçamos.
MILTON FORNAZARI JUNIOR
O valor da prova indireta
Para viabilizar a condenação em crimes complexos, é preciso considerar fatos acessórios que, por indução, levem ao autor do delito
Alegam eles que a utilização da chamada teoria do domínio do fato levaria à condenação de pessoas com base em meros indícios, em afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência.
Não é verdadeira a alegação. Em primeiro lugar, cabe esclarecer que a teoria do domínio do fato apenas admite que se distinga a figura do mandante do crime e, acertadamente, determina que seja ele responsabilizado pelo crime, juntamente com o mero executor, ambos como coautores.
Por outro lado, para que haja a condenação do mandante é preciso que existam provas contra ele e isso nada mais tem a ver com a teoria do domínio do fato, mas, sim, com as provas produzidas na persecução penal.
Nas espécies dos crimes citados, de costumeira e elevada complexidade, quase sempre é muito difícil comprovar diretamente o envolvimento dos seus mandantes, ou seja, daqueles que ocupam o ápice das organizações criminosas e idealizam toda a engenharia criminosa, muitas vezes entre quatro paredes.
Essas pessoas são geralmente as mais poderosas e deixam a execução dos crimes para outros, menos importantes e de pouco conhecimento no esquema criminoso, o que revela maior nocividade para a sociedade.
Para que seja possível a condenação, é necessário que o juiz tenha também para apreciação as chamadas provas indiretas.
Elas estão previstas no artigo 239 do Código de Processo Penal e referem-se a um conjunto de fatos provados, mas acessórios e circunstanciais ao crime, os quais, por indução, permitem concluir pela existência da ocorrência do próprio crime e do seu autor.
Essa modalidade de prova nada tem a ver com a presunção, tampouco com o conceito de indícios para fins de conhecimento da acusação (suficiência ou não de elementos probatórios que permitam o indiciamento e o início da ação penal).
Assim como as provas diretas, as indiretas podem e devem ser apreciadas pelo juiz quando da análise da condenação, uma vez que no nosso sistema processual vige o princípio da livre e fundamentada valoração da prova pelo juiz (artigo 157 do Código de Processo Penal), o que se coaduna com todos os princípios constitucionais em matéria penal.
Exige-se para isso que as provas indiretas, assim como quaisquer outras, sejam categóricas para a condenação de um indivíduo. Ou seja, sejam devidamente suficientes para afastar todas as dúvidas razoáveis da inocência do acusado.
Para isso, é preciso que as provas indiretas sejam constituídas por fatos diretamente provados, relacionados entre si e com o crime, bem como que a conclusão do crime e sua autoria fluam naturalmente do conjunto das provas indiretas, segundo as regras da lógica e da experiência humana.
Por fim, todo o raciocínio utilizado deve estar expressamente fundamentado na sentença, permitindo o devido controle de razoabilidade da decisão.
O uso das provas indiretas para a condenação de criminosos envolvidos em lavagem de dinheiro e corrupção já é largamente empregado nos países mais desenvolvidos no combate a esses crimes, em especial Estados Unidos e Espanha, ambos com diversas decisões judiciais paradigmáticas nesse sentido.
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