segunda-feira, 4 de março de 2013

Tendências/Debates

folha de são paulo

JORGE CLAUDIO RIBEIRO
O papa tem corpo
Daqui para a frente, todos os pontífices terão oficialmente um corpo, serão mortais. Sê, pois, bem-vindo à raça humana, "herr" Joseph
"... Para governar a barca de são Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor tanto do corpo como do espírito; vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de tal forma que hei de reconhecer minha incapacidade para exercer bem o ministério que me foi encomendado."
Essa foi uma das mais revolucionárias declarações deste início de século. Ao anunciar sua renúncia, Bento 16 -agora papa emérito, recolhido em Castel Gandolfo- manifestou uma constatação que, embora óbvia, tomou de surpresa a tantas pessoas (dentre as quais não me incluo) mundo afora.
Que constatação foi essa? Que, como todos os seres vivos, também ele tem/é um corpo. Tal como você, eu, tal como Jesus. A corporeidade é nosso inarredável ponto de partida, pela qual somos sensíveis, relacionais e históricos.
Descer do pedestal talvez tenha sido penoso para Sua Santidade, que passou boa parte de sua vida olhando para a corporeidade alheia, em geral nela apontando o que considera mazela e desvio. Enquanto isso, instalou-se numa platônica torre de marfim em que manejava com maestria ideias e doutrinas distantes dos principais dilemas dos companheiros e companheiras de humanidade.
Eis que -à semelhança de casais homossexuais, usuários de camisinha e de anticoncepcionais, perpetradores e vítimas de pedofilia, padres ansiosos por casar, mulheres com vocação ao sacerdócio, jovens engolfados em aluvião hormonal e todas as demais pessoas- o papa parece exclamar: "Olhem, tenho um corpo!". E poderia acrescentar: "Estou com idade avançada. É difícil compreender isso?".
É, sim, e vamos demorar a interpretar esse gesto, ainda mais que, nas aparições posteriores, Bento fez alusões cifradas à hipocrisia, à divisão na igreja, a águas agitadas e a ventos contrários. A que, ou quem, se referia, concretamente?
Outro aspecto da corporeidade papal: velhice, dor e doença são sinais de finitude, mas também fontes de iluminação (lembro-me do príncipe Sidarta). Mesmo que os teólogos elaboradores de dogmas insistam que sumos pontífices são infalíveis (ok, na doutrina católica), no momento em que as articulações doem, a próstata incha e dificulta o singelo urinar, o coração exige ajuda tecnológica e uma periódica troca de pilhas, e isso tudo desemboca em invencível fadiga, então é que se vê que papas são falíveis, sim, num nível mais elementar que o doutrinal.
Contra a crença que os curiais tentaram incutir no final da vida de João Paulo 2º -agonia exposta em praça pública!-, o papa não é um holograma, um ectoplasma, um semideus ou um símbolo. Não, ele só se torna significativo quando assume radicalmente nossa comum condição humana: para dar esse passo, Bento 16 recebeu uma ajuda do próprio corpo.
A abdicação ao trono papal só pode ser considerada grandiosa ou profética porque ocorreu num ambiente enrijecido. Nas modernas corporações e instituições políticas, a troca de poder é esperada e desejável. Comparando, piscar o olho não é digno de comemorações, a não ser que ocorra num paciente após coma prolongada. Essa renúncia foi um sinal de alento, mas mostrou o nível de doença na cúpula católica.
Agora, a boa notícia: com seu gesto, o papa emérito se situa no meio de nós. Daqui para a frente, todos os pontífices terão oficialmente um corpo, serão mortais como os demais seres vivos. Sê, pois, bem vindo à raça humana, herr Joseph. Nós amorosamente te abraçamos.


MILTON FORNAZARI JUNIOR
O valor da prova indireta
Para viabilizar a condenação em crimes complexos, é preciso considerar fatos acessórios que, por indução, levem ao autor do delito
Há uma grita de parcela dos advogados criminalistas contra os tribunais superiores pela utilização de provas indiretas para fundamentar a condenação de acusados em crimes financeiros, corrupção e lavagem de dinheiro.
Alegam eles que a utilização da chamada teoria do domínio do fato levaria à condenação de pessoas com base em meros indícios, em afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência.
Não é verdadeira a alegação. Em primeiro lugar, cabe esclarecer que a teoria do domínio do fato apenas admite que se distinga a figura do mandante do crime e, acertadamente, determina que seja ele responsabilizado pelo crime, juntamente com o mero executor, ambos como coautores.
Por outro lado, para que haja a condenação do mandante é preciso que existam provas contra ele e isso nada mais tem a ver com a teoria do domínio do fato, mas, sim, com as provas produzidas na persecução penal.
Nas espécies dos crimes citados, de costumeira e elevada complexidade, quase sempre é muito difícil comprovar diretamente o envolvimento dos seus mandantes, ou seja, daqueles que ocupam o ápice das organizações criminosas e idealizam toda a engenharia criminosa, muitas vezes entre quatro paredes.
Essas pessoas são geralmente as mais poderosas e deixam a execução dos crimes para outros, menos importantes e de pouco conhecimento no esquema criminoso, o que revela maior nocividade para a sociedade.
Para que seja possível a condenação, é necessário que o juiz tenha também para apreciação as chamadas provas indiretas.
Elas estão previstas no artigo 239 do Código de Processo Penal e referem-se a um conjunto de fatos provados, mas acessórios e circunstanciais ao crime, os quais, por indução, permitem concluir pela existência da ocorrência do próprio crime e do seu autor.
Essa modalidade de prova nada tem a ver com a presunção, tampouco com o conceito de indícios para fins de conhecimento da acusação (suficiência ou não de elementos probatórios que permitam o indiciamento e o início da ação penal).
Assim como as provas diretas, as indiretas podem e devem ser apreciadas pelo juiz quando da análise da condenação, uma vez que no nosso sistema processual vige o princípio da livre e fundamentada valoração da prova pelo juiz (artigo 157 do Código de Processo Penal), o que se coaduna com todos os princípios constitucionais em matéria penal.
Exige-se para isso que as provas indiretas, assim como quaisquer outras, sejam categóricas para a condenação de um indivíduo. Ou seja, sejam devidamente suficientes para afastar todas as dúvidas razoáveis da inocência do acusado.
Para isso, é preciso que as provas indiretas sejam constituídas por fatos diretamente provados, relacionados entre si e com o crime, bem como que a conclusão do crime e sua autoria fluam naturalmente do conjunto das provas indiretas, segundo as regras da lógica e da experiência humana.
Por fim, todo o raciocínio utilizado deve estar expressamente fundamentado na sentença, permitindo o devido controle de razoabilidade da decisão.
O uso das provas indiretas para a condenação de criminosos envolvidos em lavagem de dinheiro e corrupção já é largamente empregado nos países mais desenvolvidos no combate a esses crimes, em especial Estados Unidos e Espanha, ambos com diversas decisões judiciais paradigmáticas nesse sentido.

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