Vilhena Soares
Estado de Minas: 30/04/2013
Será que a dor
psicológica pode ser tratada como a dor física? Essa dúvida foi
levantada por pesquisadores canadenses, que, para respondê-la, contaram
com a ajuda de um remédio muito conhecido: o paracetamol. O analgésico
teve a fórmula testada para servir como tratamento de problemas de fundo
social, como o sofrimento causado pela morte de uma pessoa próxima. Os
resultados da pesquisa indicam que a resposta ao questionamento que
provocou o estudo pode ser positiva.
O experimento foi feito por dois professores da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e publicado recentemente na revista Psychological Science. O líder do estudo, Daniel Randles, explica que o paracetamol foi escolhido por conta de resultados de pesquisas anteriores mostrando que o córtex cingulado dorsal anterior (DACC, pela sigla em inglês), área do cérebro responsável por sentimentos de rejeição social e de frustração, foi inibido pelo uso da substância. “Usamos esse primeiro projeto como base. Já que o DACC também é suspeito de ser importante para a sensação de incerteza ou de confusão, queríamos ir mais a fundo, provocar esses sentimentos e saber se, ao tomar o remédio, os pacientes sofreriam mudanças significativas”, conta Randles.
Os cientistas selecionaram estudantes de psicologia de diversos países e os separaram em dois grupos: o primeiro recebeu uma cápsula com 1g de paracetamol, o outro, com 1g de açúcar (placebo). Todos os participantes responderam a um questionário em que descreveram o que aconteceria com o corpo deles após a morte ou fizeram um texto sobre uma dor de dente. O grupo também teve que ler um boletim de ocorrência fictício de uma prostituta, e, como tarefa, determinar qual a fiança deveria ser paga por ela para ser solta.
O resultado encontrado pelos pesquisadores foi o esperado: as pessoas que tinham tomado o paracetamol descreveram a primeira tarefa de forma mais positiva e deram penas mais brandas à prostituta. “Estávamos interessados em saber como as pessoas respondem à angústia existencial, e sabemos que essa angústia está associada a uma ativação no DACC. Acreditamos que a ação do paracetamol nessa região foi a responsável por esse resultado”, complementa o coautor do estudo, o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de Columbia Steven Heine.
Para confirmar os resultados, os professores fizeram um novo teste, semelhante ao primeiro. Os voluntários assistiram a pequenos vídeos, um deles com um título surrealista, Coelhos, de David Lynch, para provocar angústia e confusão. “Utilizamos outras pesquisas que apontaram o tema surrealista como um agente provocante de desconforto nas pessoas”, justifica Randles. Depois, os participantes tiveram que determinar penas para uma história fictícia: grupo de desordeiros que havia feito baderna na cidade de Vancouver. O resultado foi o mesmo do primeiro exame: os estudantes que tomaram o placebo foram mais severos.
Cautela Apesar dos resultados positivos, os pesquisadores não recomendam o uso do paracetamol para outras doenças além das quais ele já é prescrito. “Nós não somos um laboratório clínico. O nosso trabalho foi desenhado para responder a uma pergunta científica básica sobre o cérebro, e foi útil usar o paracetamol como uma ferramenta nesse estudo”, conta Randles. “Nossa pesquisa sugere que o DACC pode ser de fato relevante ao processamento de experiências perturbadoras ou incomuns, como pensar sobre a morte. Se isso for verdade, ela sugere que se sentir ‘desconfortável’ ou ‘preocupado’ pode realmente ser um sentimento semelhante ao doloroso. Estamos interessados nessa questão para entender melhor como o cérebro funciona.”
Quanto ao uso de outros remédios para tratar doenças psicológicas, Randles acredita que somente estudos futuros poderão responder se isso será possível. “Não planejamos estudos para testar se o paracetamol seria uma boa medicação para a ansiedade. É certamente possível, embora, até onde sei, ninguém testou paracetamol para tratar distúrbios emocionais. Nossa pesquisa sugere que ele pode ter alguma aplicação dessa maneira, mas será necessária uma investigação maior”, complementa.
Agora, os especialistas pretendem se dedicar aos questionamentos surgidos na primeira etapa do estudo. Eles pretendem utilizar elementos que possam proporcionar resultados mais detalhados, como aparelhos de ressonância magnética.
Dúvidas O farmacêutico Rafael Martinez, do Hospital Santa Luzia, em Brasília, explica que a pesquisa é inovadora, mas pondera que o remédio não foi feito para tratar dores de origem psicológica. “O paracetamol é direcionado para dores físicas, apesar de também agir no cérebro, ao bloquear as mensagens que alertam sobre a dor em determinado local do corpo, ele responde à dor em locais onde a dor está, o braço ou uma perna, por exemplo”, diz. Segundo Maritinez, uma explicação plausível para esse efeito inesperado da substância, é a psicossomatia: a origem da dores físicas e psicológicas pode ser confundida aos ser desencadeada por uma espécie de efeito cascata. “Quando sentimos dor física e ela se transforma em estresse, por exemplo, haveria uma junção da dor física com a psicológica. O remédio, então, trataria o desconforto nessa somatização” explica.
Para provar essa relação, no entanto, Martinez acredita que são necessários estudos mais aprofundados. “Não é questão de acreditar ou não. É o mecanismo de ação que precisa ser melhor elucidado. Dizemos sempre que o medicamento tem que ser a chave da fechadura, ou seja, ele precisa tratar exatamente a dor para qual ele é designado”, complementa o especialista.
O psicólogo Sérgio Henrique Souza, da Faculdade de Psicologia do Iesb, em Brasília, também acredita que o estudo precisa ser mais aprofundado, mas avalia que os cientistas chegaram a um resultado interessante. “Acredito que exames mais precisos, como a ressonância magnética, que eles pretendem usar futuramente, precisam ser usados para dar projeção maior a essa discussão.” O psicólogo também explica que, mesmo que seja comprovado que o paracetamol ameniza a dor de problemas de fundo social, outros tratamentos ainda serão necessários “Não adianta tratarmos somente o organismo, o físico. Precisamos também tratar o ambiente em que o indivíduo vive para que, assim, os problemas de ordem social não voltem.”
Uso difundido
O paracetamol, ou acetaminofeno, é um remédio com propriedades analgésicas, mas sem propriedades anti-inflamatórias clinicamente significativas. Bloqueia os receptores sensoriais do corpo que enviam a mensagem ao cérebro, “dizendo” que há um foco de inflamação ou outro problema. Quando o cérebro deixa de receber esse aviso, a dor para. O paracetamol é um dos analgésicos mais utilizados no mundo, mas é altamente tóxico para o fígado. Os médicos sugerem que não sejam consumidos mais de 4g diárias.
palavra de especialista
Marcelo Kawano
neurologista cognitivo
Linha de pesquisa
“O estudo aponta algumas falhas na execução, como não utilizar aparelhos que mostrem qual área do córtex foi realmente afetada e procedimentos que comprovassem o estado psicológico dos participantes. No resultado, fica difícil saber se eles responderam às penas dos baderneiros e da prostituta de maneira branda porque o sofrimento havia acabado ou somente diminuído com o efeito do remédio. Apesar de mais estudos serem necessários, acredito que a pesquisa seja válida porque é possível que trabalhos como esse contribuam para que, futuramente, uma linha de pesquisa de drogas venha a se abrir e, quem sabe, conseguiremos fórmulas que possam vir a diminuir sofrimentos psíquicos
de fundo patológico.”
O experimento foi feito por dois professores da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e publicado recentemente na revista Psychological Science. O líder do estudo, Daniel Randles, explica que o paracetamol foi escolhido por conta de resultados de pesquisas anteriores mostrando que o córtex cingulado dorsal anterior (DACC, pela sigla em inglês), área do cérebro responsável por sentimentos de rejeição social e de frustração, foi inibido pelo uso da substância. “Usamos esse primeiro projeto como base. Já que o DACC também é suspeito de ser importante para a sensação de incerteza ou de confusão, queríamos ir mais a fundo, provocar esses sentimentos e saber se, ao tomar o remédio, os pacientes sofreriam mudanças significativas”, conta Randles.
Os cientistas selecionaram estudantes de psicologia de diversos países e os separaram em dois grupos: o primeiro recebeu uma cápsula com 1g de paracetamol, o outro, com 1g de açúcar (placebo). Todos os participantes responderam a um questionário em que descreveram o que aconteceria com o corpo deles após a morte ou fizeram um texto sobre uma dor de dente. O grupo também teve que ler um boletim de ocorrência fictício de uma prostituta, e, como tarefa, determinar qual a fiança deveria ser paga por ela para ser solta.
O resultado encontrado pelos pesquisadores foi o esperado: as pessoas que tinham tomado o paracetamol descreveram a primeira tarefa de forma mais positiva e deram penas mais brandas à prostituta. “Estávamos interessados em saber como as pessoas respondem à angústia existencial, e sabemos que essa angústia está associada a uma ativação no DACC. Acreditamos que a ação do paracetamol nessa região foi a responsável por esse resultado”, complementa o coautor do estudo, o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de Columbia Steven Heine.
Para confirmar os resultados, os professores fizeram um novo teste, semelhante ao primeiro. Os voluntários assistiram a pequenos vídeos, um deles com um título surrealista, Coelhos, de David Lynch, para provocar angústia e confusão. “Utilizamos outras pesquisas que apontaram o tema surrealista como um agente provocante de desconforto nas pessoas”, justifica Randles. Depois, os participantes tiveram que determinar penas para uma história fictícia: grupo de desordeiros que havia feito baderna na cidade de Vancouver. O resultado foi o mesmo do primeiro exame: os estudantes que tomaram o placebo foram mais severos.
Cautela Apesar dos resultados positivos, os pesquisadores não recomendam o uso do paracetamol para outras doenças além das quais ele já é prescrito. “Nós não somos um laboratório clínico. O nosso trabalho foi desenhado para responder a uma pergunta científica básica sobre o cérebro, e foi útil usar o paracetamol como uma ferramenta nesse estudo”, conta Randles. “Nossa pesquisa sugere que o DACC pode ser de fato relevante ao processamento de experiências perturbadoras ou incomuns, como pensar sobre a morte. Se isso for verdade, ela sugere que se sentir ‘desconfortável’ ou ‘preocupado’ pode realmente ser um sentimento semelhante ao doloroso. Estamos interessados nessa questão para entender melhor como o cérebro funciona.”
Quanto ao uso de outros remédios para tratar doenças psicológicas, Randles acredita que somente estudos futuros poderão responder se isso será possível. “Não planejamos estudos para testar se o paracetamol seria uma boa medicação para a ansiedade. É certamente possível, embora, até onde sei, ninguém testou paracetamol para tratar distúrbios emocionais. Nossa pesquisa sugere que ele pode ter alguma aplicação dessa maneira, mas será necessária uma investigação maior”, complementa.
Agora, os especialistas pretendem se dedicar aos questionamentos surgidos na primeira etapa do estudo. Eles pretendem utilizar elementos que possam proporcionar resultados mais detalhados, como aparelhos de ressonância magnética.
Dúvidas O farmacêutico Rafael Martinez, do Hospital Santa Luzia, em Brasília, explica que a pesquisa é inovadora, mas pondera que o remédio não foi feito para tratar dores de origem psicológica. “O paracetamol é direcionado para dores físicas, apesar de também agir no cérebro, ao bloquear as mensagens que alertam sobre a dor em determinado local do corpo, ele responde à dor em locais onde a dor está, o braço ou uma perna, por exemplo”, diz. Segundo Maritinez, uma explicação plausível para esse efeito inesperado da substância, é a psicossomatia: a origem da dores físicas e psicológicas pode ser confundida aos ser desencadeada por uma espécie de efeito cascata. “Quando sentimos dor física e ela se transforma em estresse, por exemplo, haveria uma junção da dor física com a psicológica. O remédio, então, trataria o desconforto nessa somatização” explica.
Para provar essa relação, no entanto, Martinez acredita que são necessários estudos mais aprofundados. “Não é questão de acreditar ou não. É o mecanismo de ação que precisa ser melhor elucidado. Dizemos sempre que o medicamento tem que ser a chave da fechadura, ou seja, ele precisa tratar exatamente a dor para qual ele é designado”, complementa o especialista.
O psicólogo Sérgio Henrique Souza, da Faculdade de Psicologia do Iesb, em Brasília, também acredita que o estudo precisa ser mais aprofundado, mas avalia que os cientistas chegaram a um resultado interessante. “Acredito que exames mais precisos, como a ressonância magnética, que eles pretendem usar futuramente, precisam ser usados para dar projeção maior a essa discussão.” O psicólogo também explica que, mesmo que seja comprovado que o paracetamol ameniza a dor de problemas de fundo social, outros tratamentos ainda serão necessários “Não adianta tratarmos somente o organismo, o físico. Precisamos também tratar o ambiente em que o indivíduo vive para que, assim, os problemas de ordem social não voltem.”
Uso difundido
O paracetamol, ou acetaminofeno, é um remédio com propriedades analgésicas, mas sem propriedades anti-inflamatórias clinicamente significativas. Bloqueia os receptores sensoriais do corpo que enviam a mensagem ao cérebro, “dizendo” que há um foco de inflamação ou outro problema. Quando o cérebro deixa de receber esse aviso, a dor para. O paracetamol é um dos analgésicos mais utilizados no mundo, mas é altamente tóxico para o fígado. Os médicos sugerem que não sejam consumidos mais de 4g diárias.
palavra de especialista
Marcelo Kawano
neurologista cognitivo
Linha de pesquisa
“O estudo aponta algumas falhas na execução, como não utilizar aparelhos que mostrem qual área do córtex foi realmente afetada e procedimentos que comprovassem o estado psicológico dos participantes. No resultado, fica difícil saber se eles responderam às penas dos baderneiros e da prostituta de maneira branda porque o sofrimento havia acabado ou somente diminuído com o efeito do remédio. Apesar de mais estudos serem necessários, acredito que a pesquisa seja válida porque é possível que trabalhos como esse contribuam para que, futuramente, uma linha de pesquisa de drogas venha a se abrir e, quem sabe, conseguiremos fórmulas que possam vir a diminuir sofrimentos psíquicos
de fundo patológico.”
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