quinta-feira, 4 de abril de 2013

Com vida fascinante, jornalista e atriz conta o Brasil de 1930 a 1970

folha de são paulo

Em livro de memórias lançado hoje, Vera Gertel evoca figuras marcantes da história do país
Autora narra militância pós-1964 e participação na luta armada, quando apoiou sobretudo a organização ALN
MÁRIO MAGALHÃESESPECIAL PARA A FOLHAEm rodas femininas, são recorrentes as conversas sobre o que teria sido a sorte grande da atriz, jornalista e tradutora Vera Gertel, ao se casar com três homens tidos como para lá de interessantes: pela ordem das uniões, o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), o compositor Carlos Lyra e o jornalista Janio de Freitas.
A leitura do livro de memórias de Vera, "Um Gosto Amargo de Bala" (Civilização Brasileira), consolida a suspeita de que sortudos mesmo foram seus ex-maridos.
Em um tempo em que tanta gente escrevinha autobiografias com a ilusão de que irrelevâncias possam encantar os outros, a autora contrapõe uma vida fascinante, com personagens marcantes no teatro, no jornalismo e na esquerda do Brasil da década de 1930 à de 1970, quando termina o relato.
Não é à toa que o volume ostente apresentadores ilustres nas orelhas e em sua contracapa: os jornalistas e escritores Ruy Castro, Carlos Heitor Cony e Luis Fernando
Verissimo.
Vera nasceu em 1937, filha de um casal de comunistas, o futuro jornalista (inclusive daFolha) Noé e a tecelã Raquel Gertel. Devido à perseguição da ditadura do Estado Novo (1937-45), veio ao mundo em São Paulo, mas a registraram no Rio.
A mãe escolheu para o bebê o nome de Anéli, homenagem à frente de esquerda ANL (Aliança Nacional Libertadora), banida em 1935. O pai, mais sóbrio, temeu por encrencas e a inscreveu no cartório como Vera. Logo ele foi preso por "subversão", e, anos depois, a filha o visitou no presídio de Ilha Grande.
Em 1940, Raquel também perdeu a liberdade, depois de dar vivas em público ao dirigente comunista Luís Carlos Prestes (1898-1990). A menina não parava de berrar o nome da mãe ao ir ao seu encontro na sede da polícia política carioca.
Com a democracia e o tempo, Vera tornou-se mais uma militante do Partido Comunista na família. No fim da década de 1950, formou com dois atores e camaradas, Oduvaldo Vianna Filho e Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), o Teatro Paulista do Estudante, que em seguida se juntou ao Teatro de Arena.
Em seu casamento com Vianna, o padrinho da noiva foi o jornalista Joaquim Câmara Ferreira (1913-1970), que com o nome de guerra "Toledo" ganharia fama como um dos principais líderes da guerrilha contra a ditadura pós-1964. O do noivo foi Guarnieri.
Na minissérie "Anos Rebeldes", de 1992, os padrinhos se "reencontraram": o ator viveu um papel inspirado no velho "Toledo", morto na tortura em 1970.
Com a conversão ao jornalismo, a afilhada de "Toledo" abandonou a celebrada carreira nos palcos. Uma de suas interpretações mais conhecidas ocorreu na peça "Eles Não Usam Black-Tie", em montagem aplaudida pelo crítico Paulo Francis.
Em 1968, outro crítico importante, Yan Michalski, aclamou como "um pequeno milagre interpretativo" a atuação da atriz em "O Jardim das Cerejeiras".
Vera não deixava de militar. No golpe de Estado de 1964, estava na sede da União Nacional dos Estudantes quando o prédio foi atacado por ativistas de direita. Não demorou a se incorporar à logística da luta armada, apoiando sobretudo a ALN (Ação Libertadora Nacional).
Mesmo evocando carinhosamente figuras generosas e gestos de grandeza, Vera Gertel, 75, narra passagens duras e episódios de mesquinharia e miséria humana, até de coadjuvantes famosos. Por vezes, a memória equivale à catarse.
A autora conta tanto das querelas, sonhos e frustrações do século passado que surpreende com novidades até quem, como eu, acompanhou de longe a elaboração do livro. A epígrafe, versos do poeta Paulo Leminski condensados em uma frase, soa certeira: "Haja hoje para tanto ontem".
MÁRIO MAGALHÃES é jornalista, ex-ombudsman da Folha e autor da biografia "Marighella - o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo" (Companhia das Letras).
UM GOSTO AMARGO DE BALA
AUTOR Vera Gertel
EDITORA Civilização Brasileira
QUANTO R$ 29,90 (272 págs.)
LANÇAMENTO hoje, às 18h30, na Livraria da Vila - Shopping Higienópolis (av. Higienópolis, 618; tel. 0/xx/11/3660-0230)

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