"Puniu o clube a jogar..."
Essas coisas fazem escola e se propagam rapidamente. O horroroso uso do verbo "ter" não me deixa mentir
SEMPRE QUE se referia ao português de figuras públicas, jornalistas etc., o saudoso Millôr Fernandes citava as regências estranhas, forçadas. Tinha plena razão o grande Millôr.
Antes de ilustrar o que dizia o escritor, convém lembrar que a regência diz respeito à relação que se estabelece entre as palavras ou orações. Em "Ele gosta de futebol", por exemplo, o verbo "gostar" rege a preposição "de". A regência não se limita à relação entre os verbos e os seus complementos. Em "olhos verdes", por exemplo, o substantivo "olhos" é o regente, por isso o adjetivo ("verdes") se ajusta à flexão de número (plural) imposta pelo substantivo.
Voltando ao que dizia Millôr, há, sim, um festival de regências bizarras nos meios de comunicação. Salvo engano, o prato preferido desses inventores é a preposição "a". Em diversos casos em que naturalmente se usaria "para", surge, misteriosamente, o empafioso "a". Há algum tempo, um jornal publicou o seguinte título, a respeito de um teste comparativo entre dois automóveis: "Carro X não é páreo a carro Y". Páreo "a"? Alguém, em sã consciência, diria que o time X não é páreo "ao" Barcelona, por exemplo? Duvideodó!
"Carro X não é páreo a carro Y" tem fortíssimo cheiro de invencionice, mandracaria, falsa erudição. Alguém dirá que o "a" entrou no lugar do "para" por uma questão de espaço. Não era isso. Havia espaço mais do que suficiente para que o título fosse o óbvio ("Carro X não é páreo para carro Y").
Outro exemplo (este muito mais frequente do que o anterior) se vê com o verbo "socorrer". Jornalistas de rádio ou TV adoram dizer que "Fulano foi socorrido ao hospital X". Esse caso, que é um pouco diferente do anterior, tem características que merecem atenção. Temos aí um cruzamento. Explico: Fulano foi levado "ao" (ou "para o") hospital X e socorrido "no" hospital X. O que se faz? Uma saladinha... Embute-se o sentido do verbo "levar" no de "socorrer" e mantém-se a preposição que se usa com "levar"... Elaiá!
A construção corrente no padrão culto da língua não é essa; é esta, mais do que óbvia: "Fulano foi levado ao (ou 'para o') hospital X, onde foi socorrido". Para os que preferem algo mais sintético, pode-se usar a também óbvia construção "Fulano foi socorrido no hospital X" (elimina-se a óbvia informação de que Fulano foi levado para lá, já que, se o indivíduo foi socorrido no hospital X, é mais do que evidente que ele foi conduzido para lá).
Agora, uma grande maravilha, que ouvi dia desses num programa esportivo: "A Conmebol puniu o clube a jogar com portões fechados...". Puniu o clube "a" jogar? Isso é que é inclusão verbal! O que talvez fosse algo como "Puniu o clube, o que o obriga a jogar..." ou "Puniu o clube, que será obrigado a jogar..." acaba virando uma mixórdia que lembra de longe o português que eu, tu e o Chico Barrigudo usamos...
É óbvio que essas coisas fazem escola e se propagam rapidamente. Está aí o horroroso uso do verbo "ter", que não me deixa mentir. Parece que a imprensa não abre mão disso, nem a pau. É um tal de "O motorista teve a perna quebrada" ou bobagens afins que não há ouvido são que aguente...
Não posso encerrar a coluna sem deixar de citar o texto que vi na madrugada de ontem no blog do grande Juca Kfouri ("Ascendeu a chama verde"). Foi grande o número de pessoas que "corrigiram" Juca e/ou o site pelo "erro" (esse pessoal queria "acendeu" no lugar de "ascendeu")... E olhe que não faltou didatismo no texto do grande Juca ("O Palmeiras subia, ASCENDIA, e chegava..." -assim mesmo, com a palavra "ascendia" toda em maiúsculas). É dura a vida, meu caro Juca. Mas a gente aguenta! É isso.
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