Lúcidos e surdos
RIO DE JANEIRO - Em 1991, fui entrevistar o fabuloso Antonio Nássara para meu livro "O Anjo Pornográfico", sobre Nelson Rodrigues. Nássara era cartunista, artista gráfico e o último remanescente de "Crítica", jornal do pai de Nelson, empastelado em 1930. Aos 81 anos, estava 100% lúcido e surdo. Eu tinha de escrever a pergunta com Pilot num bloco gigante. Nássara a lia e me respondia -aos berros, como se o surdo fosse eu. Era preciso manter a objetividade e não rir.Nássara fora também coautor de marchinhas como "Alá-lá-ô", "Formosa" e "Balzaquiana" e sambas como "Meu Consolo É Você" e "Mundo de Zinco". Era cruel que um homem capaz de tais maravilhas e que privou com os grandes cantores e músicos de seu tempo vivesse agora num mundo de silêncio. Sua surdez decorria apenas da idade -porque toda a música que lhe passou pela vida, mesmo quando em alto volume, ainda era tocada a níveis compatíveis com o ouvido humano.
Desde então, uma multidão já chegou ou está chegando ao nível de surdez de Nássara, só que muito mais cedo. Segundo uma pesquisa da Associação de Fonoaudiologia dos EUA, 15% das crianças americanas em idade escolar registram perda auditiva permanente, provocada por ruído ambiente -trânsito, sirenes, britadeiras, secadores de cabelo, lanchonetes, shows em arenas fechadas- ou por dispositivos musicais portáteis. Nestes, a música que se toca pode chegar a 110 decibéis, equivalente a uma serra elétrica.
A pesquisa acusou que 35% dos adultos e 59% dos adolescentes usuários desses dispositivos admitem fazê-lo com volume muito alto e durante várias horas por dia. Daí apresentarem hoje os sintomas de surdez que só deveriam ter aos 60 anos. Tudo isso vale também para o Brasil.
Um dia, com sorte, a surdez será total, planetária, e passaremos a ouvir apenas a música das esferas.
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