João Paulo
Estado de Minas: 18/05/2013
Eric Hobsbawm (1917-2012) foi um homem do século 20. Mais que isso: foi possivelmente o historiador que melhor refletiu sobre seu tempo. Sua série das eras – Era das revoluções, Era do capital, Era dos impérios e Era dos extremos – criou um padrão de história narrativa que é um monumento de conhecimento historiográfico, conjugando informações da política e da sociologia, mas com grande sensibilidade para a cultura e suas manifestações. Marxista durante toda a vida, organizador de uma coleção em 12 volumes, História do marxismo, Hobsbawm lecionou na Inglaterra e nos Estados Unidos e foi interlocutor respeitado mesmo entre adversários teóricos. Elegante e culto, escreveu ainda sobre rebeldes primitivos e jazz, atuou como intelectual público em diversas causas e também deixou obra importante no campo da teoria da história.
Para dar conta do século 20, foi às suas raízes. Para completar sua visão, refletiu com acuidade sobre o que veio depois, já no século 21, que viu nascer com olhos abertos para a revolução tecnológica. Os dilemas da modernidade, as experiências políticas, as manifestações artísticas, as transformações sociais sempre foram suas principais inspirações. Se tinha tempos interessantes para avaliar (seu livro de memórias tem exatamente este título, Tempos interessantes, não necessariamente felizes), nem por isso escapou de ver desmanchar vários castelos de sonhos, em erosões sociais que atravessaram a esquerda e a direita, até a grande derrocada do que um dia se chamou “sociedade burguesa”.
E é exatamente sobre essa sensação de fim de civilização que versam os ensaios do livro póstumo que acaba de ser lançado no Brasil, Tempos fraturados – Cultura e sociedade no século XX. O volume reúne 22 ensaios, com análises que vão da política à cultura, entre trabalhos inéditos, resenhas e conferências, que cobrem o arco temporal que vai da belle époque ao capitalismo moderno, tendo como marco de seu esgotamento a sociedade de consumo. Hobsbawm nunca foi elitista e valorizava a cultura popular, mas tinha certo desencanto em perceber que o pensamento andava em baixa numa época que prezava mais um cantor de rock que um intelectual que tem coragem de chegar à arena pública e oferecer suas ideias ao debate.
Há um ar de testamento que perpassa os escritos do historiador, já que a maior parte dos textos foi escrita a partir dos anos 1990, pós-queda do Muro de Berlim e período de celebração da sociedade de mercado. Se o contexto político e econômico parecia se alimentar num consenso que apontava o fim da história, o historiador, ciente de seus instrumentos de análise, coloca em xeque a própria necessidade da cultura e do pensamento em tal cenário dissolvente. Por isso, os ensaios, mesmo produzidos em momentos e contextos específicos, parecem caminhar de um diagnóstico – a difícil situação da chamada cultura erudita – para a afirmação de uma crise – as incertezas do saber e a recuperação do mito.
Nesse caminho, Hobsbawm lança sua inteligência ao mundo para decifrar, entre outros aspectos, a cultura na virada do milênio; o papel dos judeus na vida intelectual; a obra de Karl Kraus; o sentido da música erudita numa sociedade de mercado na qual ela é insignificante em termos econômicos e de público; a perda de substância da arte burguesa no pós-Primeira Guerra; o enfraquecimento das ciências como elementos centrais da visão de mundo (o que carrega para a mesma sensação de inutilidade a educação e o projeto de universidade). Longe do historiador lamentar a democratização que chega junto com a participação das pessoas comuns na produção e fruição da cultura. O que ele aponta é a sensação de não saber bem o que fazer com ela num mundo no qual sua presença e papel é totalmente alterada e diminuída ao se tornar um produto entre outros.
Protesto Há alguns ensaios provocativos, como “Os intelectuais: papel, função e paradoxo”, escrito um ano antes de sua morte, em que Hobsbawm identifica o momento em que a figura do intelectual público deixa de ser significativa para a humanidade. Depois de percorrer a gênese desse personagem, dos antigos xamãs aos monges medievais, o pensador chega ao tempo da burguesia instruída, da qual faziam parte desde os intelectuais livres, ao modo de personagens da Bohème, até os literatos e jornalistas que deram o tom dos debates públicos que marcaram a primeira metade do século passado.
Neste contexto, fazia parte do universo moral do mundo ocidental a presença de pessoas que se agitavam em torno de ideias, projetos e causas, do caso Dreyfus à luta contra a colonização; da defesa de ideias estéticas de vanguarda à luta pelo desarmamento nuclear. Foi um tempo de gente como Sartre, Foucault, Raymond Aron e Derrida. Convocados a participar dos debates, os intelectuais eram presença pública irrecusável em todos os cenários de disputa.
Para Hobsbawm, o declínio dos grandes “intelectuais protestativos” deve-se tanto ao fim da Guerra Fria como à despolitização decorrente do período de crescimento econômico e triunfo da sociedade de consumo. Num mundo marcado pelo egoísmo individualista, o intelectual público desaparece frente ao salvacionismo pop de Bono Vox e companhia. “Vivemos uma nova era, ao menos até que o ruído universal da autoexpressão do Facebook e os ideais igualitários da internet produzam seu pleno efeito público.” Como se vê, Hobsbawm não vira as costas para a tecnologia, mas não sucumbe a seus efeitos meramente emocionais. É até possível que as redes sociais potencializem a revolta necessária, mas há inimigos poderosos a serem vencidos em seu próprio campo de entropia e isolamento.
O ensaio que fecha o livro, “O caubói americano: um mito internacional?”, é um exemplo do que pode a boa história aliada à análise política e sociológica. Hobsbawm tem como objeto um personagem tipicamente americano, o solitário cavaleiro que atravessa o país em busca de um modelo de vida justo. O historiador se pergunta sobre a universalidade do mito para concluir que ele se casa com um tipo de anarquismo muito próprio dos EUA, no qual o indivíduo suplanta o Estado e a lei em nome de valores morais inquestionáveis. O herói, para o americano, é sempre solitário (do caubói ao detetive particular), ao passo que os bandidos e ditadores precisam sempre do outro, na forma de obediência irrestrita. E conclui Hobsbawm que o caubói só seria viável como herói numa sociedade burguesa sem verdadeiras raízes pré-burguesas. Mas nem só de heróis se compõe a galeria de tipos do historiador. Ele conhece o mal e sabe que seus caminhos não são assim tão inescrutáveis quanto parece.
Numa de suas sínteses precisas e atordoantes, no artigo “A perspectiva da religião pública”, Hobsbawm ataca a um só tempo a religião e a ciência, no que as duas têm de pior: a capacidade de fazer do ódio o motor da ação humana. “Pois o paradoxo do fundamentalismo religioso redivivo é que ele surja num mundo em que a existência humana repousa em alicerces tecnocientíficos incompatíveis com ela, mas indispensáveis até mesmo para seus devotos.” E completa: “Os novos convertidos pentecostais não recuam diante do mundo do Google e do iPhone: florescem nele”. Razão e antirrazão numa mesma sentença. Vivemos mesmo tempos fraturados.
E nem os intelectuais parecem que estão lá, no coração do mundo, para dar uma mãozinha à humanidade.
Tempos fraturados – Cultura e sociedade no século XX
• De Eric Hobsbawm
• Editora Companhia das Letras
• 344 páginas, R$ 39,50
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