sábado, 18 de maio de 2013

Relato do ilegível - José Castello


O Globo - 18/05/2013


O que um alguém sente durante
um bombardeio? Que emoções
mais extremas definem essa
experiência? O escritor alemão
Ernst Jünger (1895-1998), que
combateu como voluntário durante
a Primeira Guerra Mundial, descreve este
sentimento, em que paralisia e horror se misturam,
com uma imagem. Em “Tempestades de
aço” (Cosac Naify, tradução de Marcelo Backes),
ele sugere a seu leitor que se imagine amarrado
a um poste, sob a ameaça de um homem que balança
diante dele um pesado martelo. “Ora o
martelo é recuado a fim de adquirir impulso, ora
ele sibila para a frente de modo a quase tocar o
crânio, depois volta a acertar o poste fazendo
voar estilhaços”. É a experiência do absoluto imponderável,
na qual um intenso horror e uma
frágil esperança confluem para um só arrepio.
“Essa situação corresponde exatamente àquilo
que se vivencia em um bombardeio pesado”, resume
Jünger.

O espetáculo infernal guarda, ainda, a estrutura
de uma peça de teatro. Ocorre que — para seguir
essa segunda imagem — a plateia oscila, os
cenários tremem e o palco se rasga. A confiança
falha. Toda lucidez é inútil. Ainda assim, Ernst
Jünger faz, em “Tempestades de aço”, um minucioso
retrato da guerra. É verdade que, um século
depois da Primeira Grande Guerra, os recursos
tecnológicos modificaram completamente a
realidade das batalhas. A guerra, hoje, parece —
apenas parece — mais virtual do que real. Só um
jogo colorido estampado em um monitor. Contudo,
o livro de Jünger se oferece como lanterna
para iluminar não só o que experimentam, hoje
em dia, palestinos e judeus, curdos e budistas,
minorias étnicas e religiosas perdidas nas zonas
mais distantes do planeta. Mas também (bastando
pensar no atentado da última maratona
de Boston) os americanos comuns. Aqueles que
estão mais próximos. Todos nós.

Além de voluntário na Primeira Guerra, e
mesmo divergindo do nazismo, Jünger participou
da investida alemã na Segunda Guerra.
Quando jovem, abandonara os estudos para combater
com a Legião Estrangeira. Reconhece que
cresceu em uma época na qual “todos sentíamos a
nostalgia do incomum, do grande perigo”. A vida
cotidiana lhes parecia banal. “E então a guerra tomou
conta de nossas vidas como um desvario”.
Um louco ideal. Alistado como combatente da
Primeira Guerra, cheio de sonhos
de grandeza, teve, logo, a
primeira visão da realidade: viu
um homem que chegava de um
bombardeio brutalmente ferido.
“O que era aquilo? A guerra
havia mostrado suas garras e jogado
fora a máscara acolhedora”.
Acrescenta: “Era como uma
aparição fantasmagórica à luz
do meio-dia”.

A guerra, no século XXI, tem
uma aparência invisível. A tecnologia
e as transmissões em tempo real costumam
exibir, por longo tempo, o enigmático espetáculo
de um jogo de luzes, volta e meio riscado
por uma explosão, ou um estrondo. A guerra —
ainda que tão perto de nós — parece distante e
abstrata. Sobretudo abstrata. É tudo muito diferente
do momento em que Jünger viu, diante de si,
o homem que definhava. “Uma força quase magnética
prendia meus olhos a esse instante; ao
mesmo tempo, algo se modificava profundamente
dentro de mim”. O que se modifica? Toda uma
visão imaginária da glória — como combate viril,
engajamento e poder. O real, com seu manto de
sangue, passou a tomar o lugar de tudo.

“Tempestades de aço” é, em certo sentido, uma
narrativa radicalmente antiliterária.
Até porque parte, de fato,
não da imaginação e seus voos
— sublime animal de asas abertas
—, mas de algo mais bruto e
precário: os horrores da carne.
Ainda assim, penso, só um grande
escritor poderia ser tão detalhista
e precioso. Mesmo quando
descreve as longas noites de
espera nas valas das trincheiras,
Jünger arranca, para usar suas
próprias palavras, da “mesmice
deserta” algo que, apesar de tudo, insiste em latejar.
Desmoronadas as ilusões de grandeza, instala-
se o tédio, “mais enervante que a proximidade
da morte”. No lugar da glória, a guerra é, na maior
parte do tempo, estagnação. Não desprovida de
instabilidade: na solidão das valas, o chão afunda
e o céu treme. Conforme os bombardeiros se sucedem,
surge, como descreve Jünger, “a presença
viva da morte”. Sim, a morte vive: ela incomoda,
se mexe, disseminando a decepção e o insuportável.
Observar a guerra desde dentro, sintetiza
o escritor, é deparar-se com uma “visão do
incompreensível”.

Em meio à floresta de horrores, não se consegue
dar nome ao que se vê. O que talvez nos ajude
a entender um pouco algo que Jünger constatou
incrédulo: a indiferença dos pássaros aos ruídos
dos combates. “Era estranho que os pequenos
pássaros da floresta parecessem não se importar
com esse barulho cêntuplo; eles pousavam
em paz acima dos rolos de fumaça, nos galhos
destroçados”. Durante os intervalos dos
bombardeios, o escritor alemão podia ouvir
“seus cantos galantes e seu júbilo despreocupado”.
Como pássaros não falam, a ausência de nomes
para o que eles presenciam não os afeta. O
que mais dói na guerra, Jünger faz pensar, é não
haver um nome aceitável para aquele emaranhado
de dor. “Parecia inclusive que os pássaros
eram estimulados pela avalanche de ruídos que
rebentava em volta deles”. Talvez os ouvissem
como música. Pássaros habitam o grande sono
da abstração. Na floresta sem nome, Jünger
constata abismado, são os únicos que, indiferentes,
conservam a alegria.

Jünger rememora seus próprios sustos, ferimentos,
dores. Mas “Tempestades de aço” não é
o relato de uma experiência de heroísmo. Estranha
narrativa, que joga seu foco justamente sobre
aquilo que preferimos não ler. Não só o indizível,
mas o ilegível. E é exatamente desse ilegível,
aquilo que nenhum sentido suporta — ou
cujos únicos sentidos decorrem da surdez e da
afasia —, que Jünger, muito aquém da literatura,
ainda naquele terreno em que o real simplesmente
ferve sem aceitar qualquer nomeação, se
põe a escrever.

Deu-nos um livro áspero, desconfortável, mas
que nos acorda. Não é bom acordar entre destroços,
mas — sendo eles tudo o que temos — é o
que de melhor há a fazer.

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