Estado de Minas - 22/06/2013
O antropólogo Luiz Eduardo Soares parece a pessoa 
certa para explicar os movimentos que tomam as ruas do Brasil, dado seu 
conhecimento e experiência com a análise política, o comportamento 
social e as políticas de segurança pública. No entanto, faz questão de 
deixar claro que não sabe de muita coisa: “É necessário afirmar com 
humildade nossa ignorância ante um processo cuja natureza nos desafia, 
intelectualmente”. Em entrevista a Ângela Faria, ele fala da tendência 
em tentar entender o novo com os olhos do passado, dos desafios postos à
 segurança pública e às famílias que convivem, a partir das últimas 
semanas, com uma nova inclinação dos jovens em direção às ruas e à 
política. “O tempo é de imprevisibilidade e sustos, riscos e ameaças, 
mas também de beleza: o novo insinuando-se pelas frestas de nossa 
democracia, que sofre de esclerose 
precoce”, provoca.
Que lições a juventude está dando ao país? 
A
 primeira lição que os jovens nas ruas nos dão é a seguinte: as coisas 
podem mudar, porque somos nós que fazemos a história, combinando 
liberdade e limites, circunstâncias e oportunidades, imaginação e 
ousadia, disposição solidária para empreendimentos coletivos em torno do
 interesse público, evocando valores fundamentais – tais como equidade e
 justiça – e repudiando o autoritarismo tecnocrático dos governos, que 
desprezam a participação e só dialogam com os lobistas dos grandes 
interesses privados. As coisas podem mudar se acreditarmos nisso e a 
alma não for pequena. Mas mudar como e em que direção, com quais 
consequências, a que preço? Não sei. Não se sabe em que vai dar o 
movimento, não se pode saber, nem há garantias. E aí está o primeiro 
ponto sem cujo reconhecimento não produziremos as condições 
indispensáveis à futura compreensão do que o movimento significa. Neste 
momento, é necessário afirmar com humildade nossa ignorância ante um 
processo cuja natureza nos desafia, intelectualmente. Explico: diante de
 um fenômeno que rompe a rotina e surpreende a expectativa de 
estabilidade, as reações individuais são as mais variadas. Entretanto, 
de um modo geral, nosso primeiro impulso é defensivo. Qualquer mudança 
nos ameaça, porque traz consigo a fantasia de que nosso mundo pessoal, 
tão precário e incerto, está em risco e pode ruir a qualquer momento. 
Essa fantasia provém da radical insegurança que nos é constitutiva, 
seres mortais que somos. Não apenas a vida humana é frágil, como aquilo 
que chamamos “realidade” é débil e movediço. Nossa tendência, portanto, é
 projetar nossas categorias e nosso modo de pensar sobre os fatos novos 
para descrevê-los exorcizando o que neles é novo e inscreve uma 
diferença em nossos esquemas cognitivos e em nosso sistema de práticas. 
Projetar o velho sobre o potencialmente novo apenas confirma nossas 
crenças, apazigua a angústia suscitada pelo desconhecido e presta um 
serviço a nosso aparato de autodefesa, domesticando a diferença e 
anulando sua força questionadora. Em outras palavras: explicações que 
funcionam como consagrações do que já se sabe – ou se supõe saber – não 
produzem conhecimento. Se o propósito é conhecer, devemos desnaturalizar
 as imagens já formadas, inclusive porque, nesse campo, toda 
interpretação é também intervenção, é também ação social.
Que desafios o novo quadro traz para o sistema de segurança pública?
Como
 diziam alguns cartazes, no Rio de Janeiro: “Desculpem o transtorno: 
estamos mudando o país”. Ou: “Não é Turquia, não é a Grécia, é o Brasil 
despertando da inércia”. Em outras palavras, não se muda sem 
turbulências. Perdão, pedestres, a cidade está em obras para servi-los. 
Como sabemos, reformar faz barulho. Tumultua. Não tem jeito. É claro que
 a participação massiva traz problemas para a segurança pública, mas não
 pode ser definida como um problema de segurança. Trata-se de um dilema 
que está longe de ser simples, pois é preciso respeitar a liberdade de 
manifestação, preservar o patrimônio público e garantir os direitos 
violados por eventuais agressões violentas, as quais têm ocorrido, mas, é
 necessário sublinhar, apenas por iniciativa de minorias e contra a 
vontade manifesta da massa. Não há solução perfeita, nem receitas, mas 
princípios gerais, que, observados, pelo menos reduzem os danos: a 
polícia não pode estar armada; e atenção: não há armas não letais – as 
assim chamadas são menos letais, porém também matam e ferem gravemente. A
 presença policial deve restringir-se a locais estratégicos, visando a 
defesa de posições-chave. Todos devem compreender que os policiais não 
são inimigos dos manifestantes e vice-versa. Mas essa compreensão 
depende de atitudes claras por parte dos policiais. Deve-se difundir a 
ideia de que cabe a todos evitar a violência de todo tipo em benefício 
da coletividade e do próprio movimento. Mesmo não havendo lideranças 
formais ou consensuais, está patente o intuito pacífico da imensa 
maioria dos que se envolvem – e disso dou testemunho como participante. 
Quem pratica violência agride o próprio movimento, segundo a percepção 
da maioria. A tendência é que o próprio movimento iniba a ação dos que 
traem seu espírito. Se a polícia usa recursos que realimentam o círculo 
vicioso, contribui, paradoxalmente, para recompor a unidade do grupo, 
quando seria mais saudável que autogestionariamente as dinâmicas 
coletivas múltiplas inventassem meios não violentos de reduzir a 
violência, diferenciando-se internamente e pactuando suas condições de 
convívio ou de existência política. 
A violência policial agravou a situação?
Não
 há dúvida de que a brutalidade criminosa de segmentos policiais, em 
algumas cidades, ofereceu o combustível que faltava para que o movimento
 mudasse de escala, ampliando-se extraordinariamente as adesões. Os 
custos materiais (e pessoais) de algumas ações violentas e condenáveis 
cometidas por manifestantes foram infinitamente menores do que os 
prejuízos que advieram das tentativas policiais, mesmo as 
bem-intencionadas, de evitá-los. É momento de confiar mais na 
responsabilidade coletiva dos cidadãos que se manifestam, porque o fazem
 justamente em torno de temas republicanos e democráticos, por mais que 
sejam variadas as motivações. Este não é momento de polícia. A segurança
 tem de ser a da massa que se manifesta. A praça é do povo. Ou a 
coletividade em movimento respeitará limites ou terá de arcar com o 
desafio de ver-se traindo, na prática —em função de divisões internas 
que são inteiramente naturais e incontroláveis —, alguns de seus 
valores, em se considerando aqueles que têm sido evocados, nas 
manifestações. Isso envolve riscos, claro, mas não há alternativas 
melhores. Digo isso porque é irrealista supor que alguma polícia do 
mundo possa controlar multidões nas ruas, sem consequências trágicas em 
grandes proporções, sem aumentar o mal que, supostamente, deseja evitar,
 e sem fortalecer o segmento sectário e violento da massa de 
manifestantes — segmento que, no Brasil, é residual. A questão é 
perigosa para a segurança pública, por óbvio, mas não há nada que as 
instituições da segurança possam fazer, além de reduzir danos e 
envolver-se o mínimo. Este é o tempo da sociedade e dos políticos, de 
negociação e abertura ao diálogo, de criatividade e flexibilidade, de 
autocrítica profunda, de repactuação em torno do próprio sistema 
político. Tempo de imprevisibilidade e sustos, riscos e ameaças, mas 
também de beleza: o novo insinuando-se pelas frestas de nossa 
democracia, que sofre de esclerose precoce.
A Polícia Militar está preparada para a democracia?
No
 âmbito da inadiável repactuação nacional, inclui-se a reforma da 
arquitetura institucional da segurança pública, o que envolveria a 
refundação do modelo policial, particularmente a desmilitarização das 
polícias ostensivas. Não se trata de viés ideológico. As PMs são 
incompatíveis com a democracia, malgrado esforços de tantos de seus 
profissionais, porque estão organizadas à semelhança do Exército, cuja 
finalidade é defender o território nacional e preservar a soberania do 
país, fazendo a guerra, no limite. Precisa funcionar com a metodologia 
do pronto emprego, para cumprir seus objetivos constitucionais. 
Necessita de centralização e vertebração hierárquica rigorosa. A missão 
constitucional de uma polícia ostensiva e preventiva, uniformizada, é 
garantir a vida, a incolumidade física e os direitos dos cidadãos, 
fazendo com que as leis sejam observadas. Como se vê, os fins são 
inteiramente distintos. Por que a organização deveria ser a mesma? 
Sabemos que a melhor forma de uma organização é aquela que melhor serve 
ao cumprimento das finalidades da instituição. Portanto: fins distintos,
 formatos organizacionais diferentes. As PMs envolvem-se em confrontos 
armados, é verdade. Mas esses enfrentamentos correspondem a 1% de suas 
atividades diárias. Para fazer face a esse tipo de desafio, há espaço 
para a formação de unidades especializadas. É absurdo comprimir 99% no 
molde ortopédico que, quando muito, equivaleria à necessidade de 1%.
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