Folha de São Paulo
CASSIANO ELEK MACHADO
DE SÃO PAULO
DE SÃO PAULO
A trilha sonora na sala do apartamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no final da tarde de quinta-feira, era composta por sirenes de carros e pelo barulho dos helicópteros que passavam a caminho dos protestos na avenida Paulista.
"As passeatas vão ser grandes?", perguntou à Folha. Aos 82 anos, completados na semana passada, o presidente está lançando o livro "Pensadores Que Inventaram o Brasil" (Companhia das Letras), sobre intelectuais que elaboraram grandes teorias sobre o país. Mas ele diz que nenhum teórico do passado poderia entender o que acontece hoje nas ruas.
Mais do que isso, ele acredita que os políticos não têm condições de compreender a "insatisfação genérica" da população e nem de capitalizá-la. "Tenho dúvidas se os partidos vão ter capacidade de captar tudo isso e transformar ao menos sua mensagem", diz Cardoso. Leia a seguir trechos da entrevista.
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O sr. acaba de lançar um livro sobre intelectuais que fizeram grandes interpretações do Brasil. Como estes pensadores podem ajudar a entender o que está acontecendo no país?
Fernando Henrique Cardoso - Eles não entenderiam e nem poderiam entender. Vivíamos num mundo das classes organizadas, ou desorganizadas querendo se organizar. Estas são manifestações que não são expressões de camadas organizadas. A primeira manifestação disso que eu vi foi em Paris em 1968. E isso ainda sem a internet.
Qual a maior mudança?
Muda muito. Aquele era um movimento a favor da autonomia e da liberdade. Na França, em 1968, eles não tinham linguagem para expressar o sentimento que tinham. Ou era foice e martelo, ou bandeira negra, e cantavam a "Internacional Socialista", que diz "De pé, ó famintos da terra". Não tinha faminto nenhum ali. Mas a França tinha sindicatos, partidos, organização. Agora, com a internet, e com a fragmentação maior de classes, é diferente. O comando é quase inexistente, vai se formar na rua. As demandas são muitas, o pretexto pode ser qualquer um. Esta situação me lembra um ensaio meu dos anos 1970 chamado "A teoria do curto-circuito".
Vivemos um curto-circuito?
Sim. O preço de ônibus foi um estopim. Ali está desencapado um fio. Mas aí pega fogo em outros. Não foi a classe dominada. Foram os jovens. São eles que estão gritando aí. Não foram os que não podem pagar. Estão gritando contra a injustiça em geral, vagamente. Juntam tudo: PEC 37, a corrupção, o custo dos estádios, dos transporte.
Qual o papel dos últimos governos nisso?
Nesses últimos anos, com a ascensão do Lula, o que ele propôs como ideologia? Vamos consumir o que é bom. Não é por que eu uso um macacão que não posso ter um automóvel. Criou um estilo de crescimento que é o oposto da China. Lá fazem poupança e investem. Aqui, consome-se sem investir. A rua está dizendo: não basta o consumo, quero mais. Não há razão objetiva. Não tem desemprego, ditadura ou opressão. Não é mundo árabe, Espanha ou Itália.
A Espanha e a Itália estão vivendo uma grande crise de representação política...
Aqui também. As pessoas não identificam nas instituições os canais que as levem ao que eles querem. Nenhum destes movimentos recentes gerou novas institucionalidades. O apelo do movimento aqui não é a ninguém. No mundo árabe querem derrubar o governo. Aqui não.
Vivemos algo próximo do que passou nas periferias de Paris em 2005?
Lá teve segregação racial e religiosa. Aqui não é isso. Quem está na rua não é a periferia. Aqui está todo mundo na rua. Não são sindicatos, não são grupos de trabalhadores organizados. Há uma insatisfação genérica.
Por que a insatisfação?
Porque a vida é pesada nas grandes cidades. Há sofrimento com o transporte, a poluição, a segurança. São problemas que afetam a todas as classes. O pobre leva duas horas no ônibus sofrendo. O rico fica irritado porque fica uma hora no carro. O rico está cercado de guardas. O pobre não tem guarda nenhum, mas os dois estão com medo.
Os governos recentes agravaram muito isso ao estimularem o consumo de carro. E deixaram a bomba na mão dos prefeitos. Mais carro e crédito. Talvez tenha aí também o começo da inflação e do esgotamento do crédito, agindo por baixo disso tudo. Mas o foco é um mal estar inespecífico. Não acho que qualquer partido possa, deva ou consiga capitalizar o movimento.
O sr. acredita que este movimento vai mudar a maneira de fazer política?
Alguma mudança ocasiona, mas não sei se os partidos vão ter capilaridade para sentir tudo isso e transformar ao menos sua mensagem e a ligação com fenômenos como as mídias sociais.
O sr. mencionou em entrevista recente que tinha dúvidas se as interações em mídias sociais poderiam ser concretizadas em ações políticas. Como avalia isso agora?
Não estamos vendo ações propriamente políticas. O grande teórico disso é o sociólogo espanhol Manuel Castells. Diz que a conexão entre redes e vida institucional não se processou, e ele tem dúvidas se vai se processar. Nenhum partido no Brasil tem ligação com isso. Os manifestantes não se sentem representados pelos partidos e nem sei se querem.
Como o sr. viu a imagem do Fernando Haddad junto com Geraldo Alckmin?
Acho compreensível. São símbolos do que está aí. É como a vaia da Dilma.
Lula também foi vaiado na abertura dos Jogos Pan-Americanos...
Mas foi diferente. No caso da Dilma, o que surpreende não é a vaia, mas a duração dela. Ao citar nome de autoridade em estádio é normal que haja vaia. Mas vaiaram muito tempo. Não sei se é contra a Dilma, em si, mas é contra o que está aí.
Há um desencantamento?
Sim. As pessoas melhoraram de vida, mas o governo é tão propagandista de uma maravilha virtual que há desencantamento. Este governo é tão favorável à propaganda que todos os nomes de programas de governo são "marketagem": "Minha Casa, Minha Vida", "Minha Casa Melhor". Criaram uma camada virtual de bem-estar que agora o pessoal questiona. Não sei se há desencantamento, mas há um descolamento. O dia a dia é mais duro do que o que o governo diz. Não há desemprego, mas não houve melhoria na qualidade do emprego, então a renda, mesmo com as melhorias, é pequena, insuficiente para fazer frente ao consumismo propagado. Por isso as pessoas entram no crédito. O governo está dando mais crédito, mais crédito, e endividando os bancos públicos. O que foi correto na crise virou política permanente.
E a crise de crédito vai estourar antes ou depois da eleição de 2014?
Quem sabe. Quem sabe...
Alguns cientistas políticos defendem que quando a oposição é fraca a saída é ir para as ruas. O sr. concorda que há um vazio na oposição?
Não há vazio. Basta assistir a TV Senado. A oposição é violenta o tempo todo. Só que morre ali. Não passa para a sociedade, não tem eco. Houve uma "parlamentarização" da vida política. Além disso, o governo fechou o debate. A Lei da Reforma do Petróleo não foi discutida por ninguém. A Dilma mudou a Lei da Mineração e ninguém sabe disso. E como este Congresso ficou fechado em si mesmo não temos mais regime de coalização. Agora é República Velha: governo e oposição. Não foi a oposição que diminuiu, foi tudo junto. A rua, nisso, pode ser que tenha ganho.
Mas existe uma possibilidade dos próprios partidos se reinventarem ou surgirão novos atores?
Espero que se reinventem. Mas os partidos precisam reestabelecer vínculos com a população. Para começar, têm de falar o que a população fala. Falei sobre drogas. Nenhum partido fala. Este é um tema real. O que são os temas reais? Um é o transporte. Outro é o direito do consumidor. Eu preferiria, talvez porque sou antigo, que existissem partidos capazes de captar e dialogar com estes problemas. Onde é que está o debate no Brasil? Na mídia, e só. E o governo ataca quem? A mídia.
E a mídia social cumpre um papel importante para o debate?
Para o debate, eu não sei. Para a mobilização, não tenho dúvida.
O sr. acompanha o Twitter, o Facebook e outras mídias sociais?
Twitter não. Facebook, um pouco. E alguns blogs. Não tenho tempo para acompanhar.
O sr. brinca em seu livro que desistiu de escrever o livro "Grande Indústria & Favela". Ao que pretende se dedicar agora?
Desde que saí da presidência publiquei seis livros em dez anos. Um deles, escrevi em inglês, o "The Accidental President of Brazil", que agora vou traduzir e lançar aqui no fim do ano. Mas o que ainda tenho de fazer? Ter, não tenho que fazer mais nada. Tenho 82 anos. Sendo generoso comigo mesmo terei mais cinco anos úteis. Depois, cansa. Anotei, quando estava na Presidência, quase todos os dias as coisas que achava. Tenho de deixar isso preparado para uma edição post-mortem. São umas 15 mil páginas. O único projeto que tenho no momento é este, que já retomei. Não penso em fazer outros livros.
Em seu livro recente, "Pensadores Que Inventaram o Brasil", o sr. trata de grandes retratos do Brasil. Por que não se faz mais interpretações gerais do país?
Como disse um rapaz que não conheço pessoalmente, o Marcos Nobre, este tipo de interpretação não cabe mais. Por trás destes livros, havia um projeto de nação. Estavam todos tentando ver como se fazia disso aqui uma nação. Hoje ninguém duvida: isto aqui é uma nação. Já não tem tanto uma obsessão sobre quem somos, por que somos. Nós somos. Estamos nas ruas, mas somos.
Já se sabe que no Brasil o Estado vai ser sempre importante, que o mercado vai ser sempre importante e que a sociedade civil é crescentemente importante. Já não tem dúvidas sobre quem será o propulsor.
Mas em um dos textos incluídos no livro o sr. fala que faz falta este tipo de livro panorâmico sobre o país...
Falei isso numa de 1993, há 20 anos. Até ali, ainda havia a ideia do projeto da nação. Era uma visão de um alguém iluminado que propõe a nação. Isso é antigo. O país já está aí e ninguém vai propor. Ele se faz e vai se fazendo. Não acho que seja cabível mais este tipo de grandes interpretações. A nação se diversificou muito e a universidade hoje estuda muito mais do que no passado muitas coisas.
O sr. está às vésperas de voltar a disputar uma eleição, depois de muito tempo. Vai concorrer na semana que vem a uma cadeira da Academia Brasileira de Letras. Por que o sr. decidiu concorrer?
Há muito tempo eu resistia aos convites. Primeiro porque não sou literato, até que me convenceram que a Academia não era só para escritores. Ainda assim não queria, para não politizar. Agora estou longe do poder há tanto tempo, e todo mundo sabe que não quero mais o poder, que resolvi aceitar concorrer.
O sr. vai participar hoje nas manifestações?
Não (risos). Talvez eu vá até a rua. Mas não dá mais para ir a manifestações. Seria mal interpretado imediatamente.
Tucano reúne ensaios sobre autores que o influenciaram
DE SÃO PAULOSexto livro lançado por Fernando Henrique Cardoso desde que ele deixou a Presidência, o volume "Pensadores Que Inventaram o Brasil" (Companhia das Letras) reúne textos feitos entre 1978 e março do ano passado.Os 18 ensaios do livro tratam de velhos conhecidos de Cardoso, o sociólogo.
São antigos professores seus, como o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), amigos, como o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), ou autores de seu cânone pessoal, como o político e diplomata Joaquim Nabuco (1849-1910).
Em comum, todos publicaram livros que propõem grandes leituras do que é (ou foi) o Brasil, como "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre (1900-1987), e "Formação Econômica do Brasil", de Celso Furtado (1920-2004).
O único texto inédito, feito para o livro, aborda a obra do historiador e sociólogo Raymundo Faoro (1925-2003), autor de "Os Donos do Poder". "Não é um livro pretensioso", sintetiza. "É um volume onde junto textos sobre autores que me influenciaram."
Para ex-presidente, país já não se satisfaz apenas com consumo
Governo adota um modelo 'anti-China', de estímulo ao gasto das famílias sem que haja investimento, diz FHC
Na avaliação do tucano, redes sociais têm papel importante para a mobilização, mas não fomentam debate
Para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso um dos motivos centrais que levaram aos protestos populares das últimas semanas é um fator que ele batizou com o codinome "anti-China".
"Desde o governo Lula estamos vivendo um estilo de crescimento que é o oposto ao dos chineses. Lá fazem poupança e investem. Aqui consome-se sem investir. A rua está dizendo: não basta o consumo, quero mais."
Cardoso chama a atenção para o fato de que no Brasil não há ditadura e opressão, como no chamado mundo árabe, nem desemprego, como na Europa.
"Só dividimos com países como Espanha e Itália a crise de representação política."
Ele acredita que os partidos estão falando sozinhos.
"Não é que falte oposição. Basta assistir a TV Senado. A oposição é violenta o tempo todo. Só que morre ali. Não passa para a sociedade."
O Congresso ficou, segundo ele, ensimesmado, de modo que não há mais partidos que escapem ao roteiro de ser ou governo ou oposição. "Vivemos algo semelhante à República Velha: só há governo e oposição. Não foi a oposição que diminuiu, o espaço público encolheu. A rua, nisso, pode ser que tenha ganho."
A crise partidária seria potencializada por uma estratégia do governo Dilma de "desestímulo dos debates públicos"."A Lei da Reforma do Petróleo não foi discutida por ninguém. A Dilma mudou a Lei da Mineração e ninguém sabe disso."
Segundo o ex-presidente, o único espaço para algum debate é a mídia tradicional, mas, para ele, o governo ataca a mídia por achar que ela está fazendo oposição.
As mídias sociais, na visão dele, não assumiram um papel importante de debate, apesar de terem sido fundamentais para a mobilização das manifestações.
Cardoso diz que nunca olha o Twitter ("Não tenho tempo, isto é uma atividade que vira full time'") e que olha muito raramente o Facebook e alguns blogs.
Concluído o livro "Pensadores Que Inventaram o Brasil", Cardoso se lançou recentemente a um dos seus maiores projetos pessoais.
Durante os anos em que foi presidente, escreveu ou gravou reflexões diárias sobre a experiência. "São mais de 15 mil páginas, que estou começando a organizar, para que seja feita uma edição post-mortem", afirma ele.
Embora não tenha projeto de escrever nenhum novo livro -- no volume recém-lançado ele brinca que pensou em escrever um chamado "Grande Indústria & Favela"--, acompanhará agora a tradução de uma obra que fez em inglês e que sairá no Brasil no final do ano: "The Accidental President of Brazil".
De resto, na semana que vem o ex-presidente deve enfrentar a primeira eleição em muito tempo. Concorrerá a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. "Sempre recusei os convites, mas agora estou longe do poder há tanto tempo, e todo mundo sabe que não quero mais o poder, que resolvi concorrer."
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