Afasta de mim esse cale-se
Músicos, atores e cineastas engrossam a onda de protestos que toma conta das ruas. Banda Jota Quest suspende participação em evento ligado à Copa das Confederações
Sérgio Rodrigo Reis
Estado de Minas: 22/06/2013
O Brasil explodiu. Milhares de pessoas ocuparam as ruas de São Paulo para protestar contra o aumento das passagens de ônibus. A violenta repressão policial, no último dia 13, teve como consequência a gigantesca onda de manifestações por todo o país. Oficialmente, previa-se que a Copa das Confederações se transformaria em festa, levando o povo às ruas para celebrar o futebol. Deu errado. O país virou palco da indignação com o excesso de gastos com a Copa, o sucateamento dos serviços públicos, a ingerência da Fifa na vida do cidadão e a corrupção, entre outras insatisfações. Os artistas, como sempre, não fugiram à luta.
O sentimento do brasileiro é sintetizado pelo cantor, compositor e instrumentista mineiro Gabriel Guedes: “O país acordou pelo excesso de coisas erradas, que nos levaram a dar um basta. Esses 20 centavos foram a gota d’água. Serão os centavos mais caros da história deste país”, afirma ele, referindo-se ao aumento das passagens de ônibus em São Paulo, estopim da revolta. Diante da repressão a manifestantes na capital paulista, o músico decidiu agir, militando nas redes sociais. “A indignação é geral e isso me levou às ruas. Há o despreparo das polícias, o excesso do lucro das concessionárias de transporte, impostos que não vão para onde deveriam e o despreparo dos políticos. Ninguém está dando mais conta”, reclama.
Gabriel pôs sua criatividade a serviço da indignação. Filho do cantor e compositor Beto Guedes, ele também se dedica à música, mas decidiu protestar com uma espécie de instalação visual na Praça Tom Jobim, palco inicial do movimento Fica Fícus, contrário à remoção de árvores atacadas pela mosca-branca. “Doei um piano branco, amarrei-o com corrente no poste e convidei crianças para desenhar em cima. Quero que as pessoas toquem e assim protestem”, diz.
Ator da Zona de Arte da Periferia (Zap18), Gustavo Falabella apresenta na sede do grupo, no Bairro Serrano, o espetáculo 1961-2013, ano V, dirigido por Cida Falabella. A peça propõe a releitura da história política do país nas últimas décadas pelo olhar dos jovens. Sob o impacto das manifestações realizadas em todo o Brasil, a trupe atualizou a montagem. “As pessoas ligadas ao teatro estão insatisfeitas com a administração da capital. Há a ideia pouco inclusiva de que a cidade é só de passagem, não de convivência. Trata-se a capital como empreendimento privado. A Praça da Estação, por exemplo, virou playground da Coca-Cola. Isso tem, realmente, apelo popular? Essa administração afasta as pessoas. Coisas assim me levaram à praça”, conta Gustavo, de 30 anos.
Artistas já detectam efeitos positivos dos protestos. “O grande ganho da revolução que está em curso, com essa mobilização, são a revolução da consciência e a quebra da inércia. Com isso, caminhamos com maior firmeza para mudanças estruturais”, avalia Luiz Gabriel, cantor e compositor do grupo Graveola e o Lixo Polifônico. O artista lembra que a mobilização tem história, citando a criação do Comitê dos Atingidos pela Copa. A pauta dos protestos, reforça, inclui a crítica ao modelo de transporte coletivo, “que segue os interesses de uma máfia”. Luiz condena a repressão policial ao movimento e critica a realização da Copa do Mundo no Brasil.
O cantor e compositor Pablo Castro também vê mudanças no cenário. “O cálculo de todos os níveis do governo e empresários é sempre de que o povo não se manifestará. A centelha foi a repressão brutal em São Paulo e isso ateou fogo no Brasil inteiro. Em pouco tempo, já houve conquistas para além dos anseios”, diz ele. O ator Gustavo Falabella reforça: “Artistas, como os do teatro, da dança e os mais performáticos, têm no encontro uma característica de seu trabalho. Nossa arte, de alguma forma, é uma praça pública de encontros”. E é justamente esse espaço urbano que a Zap 18 quer reconquistar.
Quando as manifestações tomaram as ruas, o cantor e compositor César Lacerda estava doente. “Fiquei em casa fazendo ativismo de sofá, pelas redes sociais”, conta. Na quinta-feira, ele conseguiu sair. E gostou do que viu: “Era bonito o que estava ocorrendo. Quem apoiava o protesto sinalizava piscando a luz. A sensação desse levante já é o seu significado”. Inicialmente, a indignação com o preço das passagens de ônibus o levou para as ruas. “Depois da redução de tarifas e diante do cenário de maravilha e horror, não é mais necessário voltar para casa”, propõe.
Gerações O cantor e compositor mineiro Sérgio Santos, de 56 anos, vê o atual momento histórico como extremamente peculiar. “Isto é inédito: um movimento horizontal, que tomou conta do país inteiro. O diferente é a forma de articulação, vinda da internet e resultado da insatisfação generalizada”, diz. Para ele, o poder público está divorciado da opinião pública. “Esse movimento surgiu para discutir o rumo em que o país está indo”, salienta Sérgio. A novidade, pondera o músico, traz também perigos: de oportunismos às reações da polícia. “Estão permitindo o vandalismo, é estratégia. Isso pode fazer com que algo que surgiu como energia transformadora maravilhosa se desgaste pouco a pouco”, adverte.
Gente de todas as idades é vista nas ruas. O cantor e compositor Lô Borges, de 61 anos, engajou-se para acompanhar o filho Luca, de 15. “Vou hoje. Só estou esperando o meu filho chegar”, revelou ele, na quarta-feira. “O povo está se indignando com tanta coisa errada em termos de saúde, educação, corrupção, segurança. As bandeiras são múltiplas, quero participar”, avisa.
O cineasta Helvécio Ratton, de 64 anos, exilou-se no Chile durante a ditadura civil-militar. Ele conhece bem a força da manifestação popular. Atualiza-se sobre o que ocorre nas ruas por meio da filha Clara, de 17, participante ativa dos protestos em BH. Por enquanto, Helvécio não foi conferi-los de perto. “Estou coçando para ir, mas quero enxergar o quadro com mais clareza. Acho legítimo”, diz. A sensação que o discurso do governo passava era de que o país já havia superado todos os problemas, lembra o diretor de Batismo de sangue. “Tudo estava maravilhoso na visão deles. Até agora, os jovens estavam passivos. Mas quando o protesto começou, partiu de algo concreto”, conclui.
Sempre à frente
A mobilização dos artistas pela democracia tem história. Durante a ditadura civil-militar (1964-985), houve várias manifestações de rua, culminando com a grande passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1968. A linha de frente reunia Leila Diniz, Chico Buarque, Clarice Lispector, Edu Lobo, Odete Lara, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Torquato Neto e Tônia Carrero, entre centenas de colegas. A classe se manifestava por meio de criações engajadas no teatro, no cinema e na MPB, alvos da repressão à liberdade de expressão. Das metáforas para driblar a censura ao enfrentamento direto, artistas e intelectuais deixaram sua assinatura na reconquista da liberdade e da democracia.
Três perguntas para...
Márcio Buzellin
Tecladista do Jota Quest
O que levou você a escrever a nota cancelando o show de hoje, na Praça da Estação, no evento comemorativo da Copa das Confederações?
No momento de manifestação popular com essa magnitude, não caberia fazer um show. O que nos levou ao cancelamento foi o respeito ao momento e o apoio à manifestação pacífica. A esperança de mudança para acabar com os absurdos que vemos por aí. Nada além disso.
Você foi para as ruas?
Fui. E vou hoje de novo, pacificamente. Falo como cidadão, pois este momento é maior do que a banda. Sou filho de uma professora que saía de casa às cinco da manhã e voltava às 11 da noite. Meu pai era funcionário público. Resolvi trabalhar com música e estou conseguindo sobreviver de arte. A gente apoia o movimento de mudança para melhor. Não apoiamos a violência oportunista.
Você ficou surpreso com a proporção das manifestações?
Isso surpreendeu não só a mim, como todos. Não há quem não esteja surpreso diante disso tudo. Hoje, estamos todos de igual para igual.
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