Kiko Ferreira
Estado de Minas: 23/06/2013
Pianista e cantora, Nina Simone ia do romantismo às canções politizadas, sempre com força e elegância |
Esse fascínio, capaz de tirar do controle o mais entediado dos profissionais de imprensa, fica claramente demonstrado nas 51 faixas da caixa de três CDs e um DVD To be free: the Nina Simone story, lançado no exterior em 2008 e que chega agora ao mercado brasileiro, no ano em que a cantora, que morreu em 2003, faria 80 anos. Com mais de cinco dezenas de discos gravados, distribuídos por mais de uma dezena de gravadoras e selos, ela recebe aqui sua mais consistente retrospectiva.
Com bons textos de apresentação, incluindo biografia e comentários sobre cada faixa, a caixa tem produção de Richard Seidel e prova, com argumentos de sobra, a capacidade que Nina Simone tinha de transformar qualquer canção, de qualquer estilo, gênero, nacionalidade ou ritmo em material próprio. Jazz, blues, reggae, pop, música indiana e israelita, africana e da Broadway, standards americanos e franceses... tudo recebia a marca da voz grave e encorpada, emoldurada pelo piano de raiz erudita, temperado em noites enfumaçadas de piano bar e em palcos de variadas dimensões e categorias.
Reunindo gravações feitas entre 1957, quando estreou no selo Bethlehem, até os registros mais modernos, quando era contratada da gravadora Elektra, já nos anos 1990, a série de três discos demonstra as várias faces de uma intérprete plural, de personalidade forte (em todos os sentidos, a ponto de maltratar músicos e produtores com gritos e agressões verbais) e magnético poder de interpretar intenções e descobrir ângulos inéditos na mais surrada das canções. Basta ver o que ela faz com a açucarada To love somebody, dos Bee Gees, a praieira Turn ! Turn! Turn!, dos Byrds, ou a enigmática Suzanne, de Leonard Cohen.
Aqui estão suas recriações mais conhecidas no Brasil, como a arrasadora versão para Ne me quites pas, de Jaques Brel (reapresentada aos americanos de maneira mais apaixonante do que na leitura de Sinatra), a balançada My baby just cares for me (usada em comercial do perfume Channel nº 5), o blues I put a spell on you e a leitura cheia de classe e emoção do hit dos Animals, Don’t let me be misunderstood.
Com um terço das músicas capturadas ao vivo e standards do jazz relidos com paixão (Mood indigo, I loves you Porgy, My man’s gone now...), a coletânea prova, ainda, por que Nina foi uma das cantoras mais requisitadas por festivais de jazz pelo mundo. E reforça a sensação nos pouco mais de 20 minutos do documentário Nina: a historical perspective, de Joel Gold, indicado ao Prêmio Emmy de 1970, mesclando entrevistas e nove músicas registradas ao vivo.
Bipolar, geniosa, genial, visceral e raivosa, mas apaixonada e amorosa, quando necessário e possível, Nina Simone está bem representada nessa série de discos. E parece se despedir da vida na última faixa, a melancólica A single woman, que fecha o último CD e deu título a seu último álbum, gravado antes dos 10 anos de luta que teve contra o câncer e que encerrou sua carreira antes que a dor, que ela tanto temia, se tornasse maior que a vontade de viver.
Voz contra o racismo
Nascida Eunice Kathleen Waymon, em Trayon, Carolina do Norte, em 1933, a cantora morreu no interior da França, aos 70 anos. A jovem que virou pianista clássica aos 12 anos e começou a cantar em bares para pagar seus estudos de piano virou Nina Simone para driblar os pais, cristãos fervorosos, e poder cantar temas pagãos e profanos. Assumindo a profissão de cantora depois de ter sido rejeitada como pianista no Curtis Institut of Philapelphia, possivelmente por ser negra e mulher, inspirou seu nome artístico na atriz francesa Simone Signoret. E passou a ser uma atuante voz contra o racismo e as diversas formas de preconceito e opressão.
O primeiro clássico de Nina Simone como compositora, Mississipi Goddam (aqui em versão ao vivo), que abre o disco dois, foi feito a partir da morte de quatro meninas negras, por uma bomba lançada por racistas numa igreja de Birmingham, no Alabama. Ela cantou no enterro de Martin Luther King, se comparava a Bob Marley antes de cantar Get up, stand up, viveu na África por bons pares de anos, para se aproximar de suas raízes, e foi cantora de canções políticas de Pete Seger e Bob Dylan. Aliás, as versões para Just like Tom Thumb’s blues, Just like a woman e The times they are a- changin, de Dylan, estão entre as melhores da caixa, ao lado de releituras esplendorosas de Here comes the sun e My sweet lord, de George Harrison, essa última acoplada à sua Today is a killer, numa faixa longa e emocionada.
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