Em casais formados por um parceiro
soropositivo, o tratamento correto com antirretrovirais reduz em 96% o
risco de contaminação pelo vírus da Aids, segundo estudo da Fiocruz.
Ainda assim, especialistas recomendam o uso de preservativo
Isabela de Oliveira
Estado de Minas: 23/06/2013
Entre os muitos
desafios da vida de um soropositivo, manter relações amorosas —
principalmente com pessoas que não têm o HIV — parece ser um dos mais
difíceis. Interessado em desvendar as vulnerabilidades enfrentadas por
um casal sorodivergente, Nilo Martinez, psicólogo especialista em
doenças infecciosas, desenvolveu durante quatro anos uma investigação
com 17 casais de sorologias diferentes, sendo 13 heterossexuais e quatro
homossexuais.
No Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas, da
Fundação Oswaldo Cruz, Martinez tentou entender melhor a realidade
desses casais. E, segundo ele, as chances de contrair o vírus não são
tão grandes se o portador tomar os medicamentos corretamente e conseguir
manter baixa a carga viral. “O teste HPTN 052 comprovou que os
antirretrovirais utilizados pelo parceiro soropositivo protegeram em 96%
o parceiro soronegativo”, conta o psicólogo, que também foi integrante
do grupo de pesquisa por trás desses testes em 2006
Martinez
concluiu que a maioria dos soropositivos soube que estava infectada
pelo HIV a partir de exames em laboratórios privados. Eles também não
tiveram o aconselhamento pré e pós-teste, conforme determina o
Ministério da Saúde. “Alguns receberam o resultado por telefone e por
e-mail, o que também está em desacordo com as regras oficiais. Além de
causar problemas psicológicos e emocionais sérios, essa experiência
afeta negativamente o entendimento da infecção pelo HIV, além da
importância da prevenção secundária como forma de evitar a reinfecção
com outras cepas virais”, destaca o pesquisador.
A prevenção
secundária envolve a administração correta dos antirretrovirais — o que
vai garantir ao casal sorodivergente mais segurança na hora da relação
sexual. Quando os medicamentos não são utilizados conforme indica a
prescrição médica, o vírus pode ficar mais resistente e os remédios
deixam de combater o processo de multiplicação do HIV. O infectologista
do Laboratório Exame Alberto Chebabo explica que, com o tratamento
antirretroviral eficaz, a quantidade de vírus na corrente sanguínea e
nas secreções sexuais se reduz a níveis muito baixos. “Isso ocorre tanto
no homem quanto na mulher, o que reduz o risco de transmissão durante o
sexo.” Chebabo ressalta que, nessa condição, embora a chance de
contrair o HIV seja pequena, ela existe. Por isso, recomenda-se o uso de
preservativos.
Esse é um ponto que o casal Karola* e Gil*, de 26 e
41 anos, sempre observou durante os três anos de casamento. Ele é
soropositivo, ela não. “Não vou mentir, tenho medo de me contaminar,
mesmo sabendo da profilaxia pós-exposição. Sempre verifico a camisinha e
meu marido também presta atenção para colocá-la corretamente”, conta a
blogueira, autora do site Karola Discorda, onde relata para outros
casais sorodivergentes a experiência vivida por ela.
Martinez
ressalta que o uso de preservativos é aconselhado até mesmo para casais
soronegativos. Relatos de alguns participantes da pesquisa, ressaltam o
psicólogo, revelam como o cuidado básico ainda enfrenta resistência
entre homens e mulheres. “Uma das entrevistadas descobriu a
soropositividade durante a gravidez e com grande surpresa, porque
confiava no parceiro estável. Ela ainda recebeu o diagnóstico sem
aconselhamento pré e pós-teste anti-HIV”, relembra.
Em segredo
A angústia de contar a soropositividade, segundo Martinez, é associada a
sentimentos de medo, rejeição, abandono e perda do parceiro. “A
revelação do diagnóstico teria o sentido de comunicar segredos ocultos
de relações extraconjugais. Ela cria a sensação de que a doença se
tornou pública e que o paciente está sendo observado pela multidão.
Outro ponto importante é que revelar (a condição) teria o sentido de
aceitação de fazer algo errado ou fazer parte de grupos de risco
estigmatizados”, pontua o pesquisador.
Por isso, muitos preferem
esconder a situação do parceiro. Na pesquisa, Martinez deparou-se com
histórias de soropositivos que mentiam, dizendo que sofriam de doenças
gastrointestinais crônicas. Eles arrancavam os rótulos dos remédios para
que a pessoa com que se relacionava não soubesse o nome dos
medicamentos ingeridos.
Com Alexandre* e Tiago*, a história não foi
diferente. Tiago sempre teve problemas em aceitar a própria sexualidade
e, quando soube que havia sido infectado pelo HIV, ficou ainda mais
complexado. Alexandre quis continuar o relacionamento, mas o namorado
preferiu o fim a correr o risco de infectar o parceiro. “Desde a data da
descoberta, nunca mais tivemos uma relação completa ou um beijo.
Estamos afastados há algum tempo. Embora eu o ame, ele não me permite
estar ao seu lado”, lamenta Alexandre.
Gravidez Karola e Gil não
falam de rompimento. Ao contrário, pretendem dar um passo maior na
relação. Eles sonham com um bebê, mas não têm condições de bancar os
tratamentos de fertilização artificial com lavagem de esperma. No
método, segundo a biomédica e embriologista Lilian Okada, o sêmen é
processado por meio de um gradiente de concentração e, posteriormente,
lavado para retirar todo o plasma seminal. O material é, então,
criopreservado e passa por uma reação em cadeia da polimerase. Só
depois, a amostra com carga viral negativa é liberada para uso.
“Quando
a mulher é soropositiva, o ideal para uma gestação com menor risco é
que ela tenha um quadro clínico estabilizado, com carga viral
indetectável. O tratamento com antirretroviral durante a gestação é
indispensável”, completa Okada, especialista do Centro de Medicina
Reprodutiva Fertilitat, no Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
Karola e Gil preferem manter as
dificuldades em segredo. Só quem sabe da soropositividade do marido é a
mãe de Karola, que a apoia totalmente. “A família dele toda sabe, e
alguns amigos íntimos dele também. Me admiram muito por eu não me
importar com a sorologia dele. O amor vence tudo, inclusive o
preconceito.”
* Nomes fictícios a pedido dos entrevistados
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