Impossível não tratar o tema das enormes manifestações que ocorrem há várias semanas em diversas cidades do país. Meu entendimento é que os protestos representam um sinal de que o contrato social da redemocratização brasileira está desgastado.
Desde a Constituição de 1988, foi-se consolidando a decisão da sociedade de construir um abrangente Estado de bem-estar social. Universalizamos a educação fundamental e avançamos muito em direção a universalizar o ensino médio.
Instituímos o SUS, um serviço de saúde universal e integral, isto é, que cobre todos os procedimentos médicos. Finalmente, os diversos programas sociais para idosos, em associação com a aposentadoria do INSS e do funcionalismo, universalizaram, na prática, a aposentadoria.
Além desses programas universais, criamos diversas iniciativas para ajudar as famílias a enfrentar riscos típicos das economias de mercado. Foram criados o seguro-desemprego, o auxílio-doença, a aposentadoria por invalidez e o Bolsa Família, entre outros programas.
Finalmente, introduziu-se o Minha Casa, Minha Vida, que subsidia a aquisição da casa própria por pessoas de baixa renda. Recentemente, o programa foi estendido, com a criação de um subsídio adicional para a aquisição de mobiliário e eletrodomésticos.
A partir da virada na política econômica em 2009, o governo trouxe para a agenda os interesses da indústria. Acumulamos reservas internacionais para ajudar a manter o câmbio mais desvalorizado, e o Tesouro emprestou quantias expressivas de recursos para o BNDES, com o objetivo de elevar o volume de crédito subsidiado ao investimento produtivo.
Adicionalmente, a agenda da indústria levou a inúmeras medidas de desoneração de tributos e à elevação da alíquota de importação para diversos produtos, com o objetivo de aumentar a competitividade manufatureira.
O resultado é um Estado que arrecada muito, por volta de 35% do PIB, transfere muitos recursos às famílias na forma de aposentadoria e programas sociais, cerca 14% do PIB, e gasta muito com juros e subsídios. Apesar da queda da taxa básica, a Selic, o custo de carregamento das reservas e dos subsídios implícitos nas operações do BNDES onera muito a conta de juros.
Não sobram, portanto, recursos para investimentos em logística, que poderão ser viabilizados se o governo aceitar taxas de remuneração maiores nos leilões de concessão. Mas, principalmente, faltam recursos para investimento em infraestrutura urbana.
Para terminar essa longa lista, é preciso lembrar que, apesar de termos caminhado muito na agenda de extensão de direitos, há o crônico problema da baixa qualidade dos serviços públicos, principalmente em educação e saúde. Nesse desafio, como em outros, pouco temos avançado.
O crescimento mais elevado no governo Lula deixou a sociedade em torpor com relação às fragilidades do contrato social da redemocratização. O crescimento bem mais baixo ao longo do mandato da presidente Dilma, que, provavelmente, fechará seu quadriênio com expansão média do PIB próxima a 2%, explicitou à sociedade os limites existentes à melhora da situação de cada um.
Aparentemente, o atual movimento de protestos levanta bandeiras pela melhoria da qualidade dos péssimos serviços públicos de educação, saúde e transporte urbano, entre outros. O aumento da passagem de ônibus e o reconhecimento dos elevados custos dos eventos esportivos serviram com detonadores da insatisfação.
A notícia que circulou na semana de que a adoção do passe livre requererá dobrar a alíquota de imposto predial coloca a discussão em bases racionais. Pode-se considerar a criação do pedágio urbano. Outras possibilidades podem ser imaginadas.
Com relação à melhora da qualidade dos serviços de saúde e educação, há uma extensa agenda que depende da criação de instrumentos que tornem a gestão desses serviços mais eficiente.
Não há saída simples e indolor nas escolhas das políticas públicas para enfrentar as deficiências do contrato social da redemocratização. Oxalá o processo eleitoral de 2014 sirva para que a sociedade amadureça esses temas e encontre os caminhos mais adequados.
Samuel de Abreu Pessôa é doutor em economia e pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.
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