Obra aberta
Vitor Ramil lança songbook e reinventa seu cancioneiro inspirado na milonga. CD duplo tem
participações de Fito Paez, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Jorge Drexler e Pedro Aznar
Ângela Faria
Estado de Minas: 17/06/2013
Nem
acabou de sair, mas já está entre os melhores discos deste ano. Foi no
mês que vem (Satolep), songbook com o resumo da obra de Vitor Ramil,
crava a milonga no coração da MPB. Aos 51 anos e 33 de carreira, esse
cantautor gaúcho raramente toca no rádio. Sua música não embala cenas de
novela, mas ele está na boca de Ney Matogrosso, Milton Nascimento, Gal
Costa, Zizi Possi, Katia B, Adriana Maciel e de Cássia Eller – para não
dizer de celebridades do Cone Sul, como o uruguaio Jorge Drexler e os
argentinos Mercedes Sosa e Pedro Aznar.
Vitor tinha tudo para se
dar bem no mainstream. Muito jovem, trocou Porto Alegre pelo Rio de
Janeiro e gravou o primeiro álbum aos 18 anos: Estrela, estrela, com
arranjos de Egberto Gismonti e Wagner Tiso. Inquieto, o gaúcho não
demorou a desafiar a poderosa indústria fonográfica. Queria preservar
seu repertório visceralmente autoral das imposições do mercado
oitentista, que já substituía o BRock e a MPB pelo lucrativo tripé
pagode-sertanejo-axé.
Sob o calor senegalês de Copacabana – em
pleno inverno –, caiu a ficha do jovem Ramil: o Brasil é rico demais
para se resumir à estética tropical. A brasilidade também está na música
do Sul, com suas milongas, tangos e ritmos que marcaram o cancioneiro
pré-bossa nova. De volta à Pelotas natal, onde mora desde 1992, o gaúcho
engendrou sua estética do frio.
A milonga é soberana na obra de
Vitor. Foi no mês que vem traz algumas “puro-sangue” e canções tecidas
sob sua inspiração. Na contramão da “ditadura da festa” associada à
sonoridade verde-amarela “oficial”, o gaúcho conduz o ouvinte por searas
da melancolia, tão presente no cancioneiro do Cone Sul.
Aliás,
Ramil avisa: esse estado da alma não é monopólio sulista, a melancolia
também está na alma brasileira. “É uma tristeza alegre”, brinca,
referindo-se à milonga.
Sob seu violão, essa prenda – comumente
associada ao estereótipo gauchesco – ganhou contornos urbanos.
Suavizou-se e se fundiu a Bob Dylan, John Lennon, à batucada do carnaval
pelotense e também ao samba, ao rock e à MPB. A bossa nova de João
Gilberto e o Clube da Esquina também têm espaço soberano nesse pampa.
Rádio Produção
independente, o songbook traz 32 faixas revigoradas pela obsessiva
busca de Vitor pela versão ideal, não importa se as canções de seus nove
discos surgiram há dois ou 30 anos. Diz ele que a milonga Deixando o
pago atingiu o formato definitivo agora, depois de figurar em dois
discos. Acostumado a “remoer” as crias, ele confessa: “Sou o meu próprio
rádio”. As canções ressurgem com novas sonoridades, despidas de
arranjos que ficaram datados. “Joguei todas as fichas na maturidade”,
explica, distanciando-se do culto à juventude que transforma bons
artistas em eternos covers de si próprios, prisioneiros de seus antigos
hits.
“O exercício de revisitar minha obra representou um salto
adiante, obrigou-me a correr riscos como se fosse jovem”, acredita
Vitor. Não é à toa que o disco se chama Foi no mês que vem. Esse
relicário de reinvenções contou com uma constelação de craques. O
fantástico violonista argentino Carlos Moscardini – companheiro em
délibáb, belo álbum de milongas de Ramil com versos de Jorge Luis Borges
e João da Cunha Vargas – gravou seis faixas. Tango da independência só
entrou no songbook graças ao violão dele. O uruguaio Jorge Drexler bate
ponto em Viajei, bossa nova pampeana. Outro portenho, o “bass hero”
Pedro Aznar, arrasou com seu cuatro venezuelano em À beça. Ícone do pop
hermano, Fito Paez, além de tocar mellotron, empresta seu canto
docemente passional a Espaço.
O cantor Ney Matogrosso – que fez
da ramiliana Astronauta lírico um dos mais belos momentos de sua nova
turnê, Atento aos sinais – explora tons inusitados de sua voz em Que
horas não são?, emocionando Vitor pela generosidade. Contribuições
gaúchas vieram de Ian Ramil, que dividiu com o pai a romântica
Passageiro, e de Bella Stone, vozeirão em Noturno. Os irmãos Kleiton e
Kledir se juntam ao caçula, à Orquestra de Câmera do Theatro São Pedro e
a Moscardini em Noite de São João, poema musicado de Fernando Pessoa. O
disco conta também com a cantora Katia B e Isabel Ramil, filha do
compositor.
Pandeiro e feijão A cozinha
percussiva é capítulo à parte, simplesmente arrasadora: seja a batida
brasuca de Marcos Suzano – com quem o gaúcho dividiu o disco Satolep
sambatown – sejam as improvisações de outro velho parceiro, o argentino
Santiago Vazquez, que tira som de grãos de feijão, suportes de shampoo e
de brinquedinhos de criança. Aqui, instrumentista tem vez. Vitor sempre
trabalhou assim, evitando a competição de sua voz e de seu violão com
os músicos. Moscardini, Aznar, Suzano, Vazquez, o violonista Carlos
Badia e Santiago Castellani, com sua tuba, são mais que convidados. São
coautores da sonoridade dessa obra aberta.
Nada disso seria
possível sem o apoio do fiel exército de fãs que acompanha Ramil há
anos. O projeto foi viabilizado graças ao financiamento coletivo por
meio da internet: 863 pessoas de oito países botaram a mão no bolso.
Gaúchos, é certo, mas também cariocas, paulistas e gente da República
Tcheca, de Portugal e dos Estados Unidos. “O público é também dono desse
trabalho”, explica ele.
De seu belo e antigo casarão, Ramil
canta para o mundo. Garantia de casa lotada em Porto Alegre, ele
esporadicamente se apresenta em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nos
últimos tempos, veio algumas vezes a BH. À margem das vitrines
midiáticas, o dom Quixote dos pampas costuma dizer que não está no
centro, mas no centro de uma outra história.
DISCO E LIVROO
projeto Foi no mês que vem reúne álbum duplo, com capa de Nara Amélia e
32 faixas, e livro com partituras de 62 composições de Vitor Ramil, que
podem ser comprados separadamente. A edição da gaúcha Belas Letras traz
ensaio de Luís Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, sobre a jornada do cantautor e romancista
de Pelotas, perfil biográfico assinado por Juarez Fonseca e artigo de
Celso Loureiro Chaves. Vagner Cunha e Fabrício Gambogi cuidaram das
partituras. Informações: www.vitorramil.com.br
O pirralho e o mestre
Ângela Faria
“Quando
Milton canta uma canção minha, é como se ela chegasse a seu destino”,
diz Vitor Ramil. Aos 13 anos, o pirralho gaúcho tentava imitar os
vocalises do disco Minas. Foi assim que aprendeu a descobrir a própria
voz.
Vitor chama Bituca de seu professor de canto. Conta que
cortou um dobrado para se “livrar” do mestre. Não queria ser o Milton
dos pampas. Só depois as lições de Caetano Veloso e de João Gilberto
entraram em sua história.
Meninote, Vitor foi a um show em
Pelotas tietar o mineiro, lá pelos anos 1970. Na maior cara de pau,
convidou-o a ficar em Porto Alegre para ver os irmãos, Kleiton e Kledir
cantarem com Caetano Veloso na semana seguinte. Pois Milton ficou.
Mais
de 30 anos depois, durante as gravações do songbook do “ex-aluno”,
Bituca garantiu: só prolongou a estada por causa daquele convite. No
belo texto que postou no site vitorramil.com.br, o discípulo agradece:
“Milton, querido, obrigado pela tua voz e pela minha”.
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