Mestre Eckhart, o herege
Eckhart pagou um preço alto por sua ousadia; o mundo não mudou muito desde então
Mestre Eckhart, alemão morto em 1328, foi um grande filósofo, místico e herege, condenado em 1329 pela Inquisição.
Na época, a norma era pregar e ensinar em latim, apesar de as pessoas comuns não entenderem latim. Eckhart pregou e ensinou em alemão, e essa foi uma das acusações contra ele, porque, segundo os inquisidores, as pessoas comuns não entendiam sutilezas teológicas ou filosóficas.
Essas ideias sofisticadas versavam sobre a experiência direta de Deus, mais conhecida na literatura especializada como mística, além de ele defender uma forma de teologia que entendia o homem como "parte de Deus".
Antes professor de grande sucesso de teologia sacra na Sorbonne, na cátedra de teologia para professores de fora do reino de França (Tomás de Aquino ocupara a mesma cátedra antes), mais tarde veio a ser transferido para uma atividade mais "paroquial" e menos intelectual em Estrasburgo.
O intelectual Eckhart foi transferido para Estrasburgo a fim de cuidar das almas ("cura das almas") dos grupos de espirituais, homens e mulheres, chamados "bégards" e "béguines", que viviam ao redor da cidade.
Seu sucesso nas pregações serviu como argumento para seus invejosos inimigos políticos o acusarem de herege, acusação que acabou por destruir sua carreira e sua vida (ele morreu no ostracismo, quando era a maior promessa da ordem dominicana depois de Tomás de Aquino) --e condenou sua obra a séculos de desconhecimento pela filosofia e pela teologia.
Eckhart era um mestre do intelecto, um "mestre da vida", como o caracterizou o medievalista Alain de Libera em seu clássico "Pensar na Idade Média". Nesse livro, De Libera descreve o perigo que era pensar fora dos muros da academia (ser um "mestre da vida") e como isso gerava perseguição pela Inquisição.
Eckhart pagou um preço alto por sua ousadia; teria sido queimado se não tivesse morrido antes.
Nessa sua atividade com o "povo", Eckhart ficou conhecido em especial pela sua aproximação com as mulheres espirituais, as "béguines". Existe até um romance, que recomendo para quem lê francês, de Jean Bédard, que se chama "Maître Eckhart" (mestre Eckhart) e narra o lendário relacionamento que ele teria tido com uma dessas mulheres, Kaltrei, que muito provavelmente foi queimada.
Um método comum da Inquisição era retirar argumentos escritos ou falados pelo réu do contexto original a fim "fazê-lo dizer o que ele não disse".
E qual era a "psicologia" de um inquisidor? Normalmente bem formado, ele se via como alguém chamado a assegurar a pureza dogmática do cristianismo e a impedir a contaminação dos costumes por ideias indesejáveis.
Essas ideias se difundiam rapidamente pelo "povo" (mesmo antes da "maior" invenção do século, o Facebook...), e, por isso, era importante cuidar para que elas não fossem postas em circulação. Como ele se via como um defensor da pureza da verdade e dos costumes no mundo (logo, do "bem"), julgava-se autorizado a perseguir, calar e queimar quem discordasse dele.
O mundo não mudou muito desde então.
P.S.: Outras inquisições. Na semana passada, nesta coluna, critiquei os excessos de certos grupos que querem se meter nos brinquedos das crianças e nas posições sexuais dos casais. Aparentemente, um link enviado por um leitor, que constituiu uma referência entre várias, cita uma entrevista que nunca existiu.
Mas o festival de curtas sobre diversidade sexual narrado na coluna nada tem a ver com essa "armadilha da internet": aconteceu em São Paulo, e eu estava presente. Nesse, sim, criticava-se a "posição de quatro" como sendo machista. Portanto, a crítica independe da falsa entrevista.
A condenação do sexo oral por motivos ideológicos também é fato.
Basta lembrarmos a campanha de anos atrás fora do país, quando uma foto de publicidade antitabagista mostrava uma mulher de joelhos, diante de um homem, com um cigarro na boca, condenando as duas formas de submissão: o sexo oral e o cigarro.
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