segunda-feira, 17 de junho de 2013

Sua vida digital não é só sua

folha de são paulo
Programa americano que vigia a internet reacendeu debates sobre privacidade na rede. Afinal, devemos nos preocupar?
BRUNO FÁVEROCOLABORAÇÃO PARA A FOLHAEm um episódio com cara de filme de espionagem, Edward Snowden, funcionário da Agência Nacional de Segurança dos EUA, vazou documentos secretos que revelaram um extenso sistema de vigilância da internet, chamado Prism, mantido desde 2007 pelo governo americano.
A descoberta de que o Estado pode ter acesso a e-mails, conversas e dados pessoais de usuários reacendeu a discussão sobre privacidade na rede. Afinal, devemos nos preocupar em ser vigiados?
Patrícia Peck, advogada especialista em direito digital, explica que uma empresa só cede informações de usuários sob ordem judicial específica ou com um pedido de autoridade, mas faz um alerta.
"Na maioria dos serviços gratuitos, os termos de uso dizem que as informações postadas também passam a ser de propriedade de quem presta o serviço". Na prática, isso significa que as empresas são tão donas do que é postado, dos e-mails ou do que é escrito no chat do Facebook quanto os usuários.
O Prism mostra o quão complexa a questão pode se tornar. O projeto foi criado com base em uma lei dos EUA. Como boa parte das empresas da internet são de lá, o governo americano tem acesso a dados de usuários do mundo todo.
"A internet tem uma sensação de desterritorialização', mas os serviços são prestados por empresas situadas nos EUA e, grande parte das vezes, seus termos de compromisso submetem usuários do resto do mundo às leis americanas", explica Carlos Affonso de Souza, professor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV.
Para Peck, o problema é que o Brasil ainda não tem uma legislação específica para regulamentar a internet. "Se houvesse uma lei protegendo usuários, as empresas de tecnologia que quisessem oferecer seus serviços aqui teriam que se adequar", afirma.
Souza diz que iniciativas de vigilância como o Prism devem, sim, ser motivo de preocupação, mas que a discussão sobre privacidade na internet deve ir além, abordando também o papel das companhias e o uso cotidiano das redes sociais.
"Muita gente diz o que eu faço na internet não tem importância, é trivial', mas dados em grande volume podem dar informações sensíveis", diz, citando como exemplo o caso da empresa americana Target, que criou um algoritmo supostamente capaz de descobrir quais clientes suas estavam grávidas a partir de seus hábitos de consumo.
"Não é uma fala alarmista do tipo vamos sair todos das redes sociais', mas as pessoas devem fazer um filtro do que vai para a internet", afirma.
Atualmente, há pelo menos dois projetos de lei sobre o assunto no Brasil. O Marco Civil, espécie de "Constituição da Internet", aguarda aprovação na Câmara. Enquanto isso, o Ministério da Justiça elabora um texto para a lei de proteção de dados pessoais.
    Temor sobre privacidade abala setor de tecnologia
    Insegurança sobre como grandes empresas ajudaram o governo pesa
    "Você tem privacidade zero. Pare de se incomodar com isso", disse executivo da Sun Microsystems em 1999
    DAVID STREITFELDDO NEW YORK TIMESO mundo da tecnologia no Vale do Silício, região dos EUA notória por concentrar empresas do setor e que não está acostumada a duvidar do futuro da internet, vive dias de desgosto.
    Manter Washington afastada sempre foi um esforço. Regulamentação governamental sufocaria a inovação, os empreendedores repetiam.
    Assim, a primeira coisa intrigante para alguns observadores é o fato de que companhias importantes --entre as quais Microsoft, Google, Yahoo, Apple e Facebook--sejam acusadas de facilitar o acesso a seus dados.
    As empresas negam ter colaborado diretamente com o Prism (leia mais abaixo), mas não parecem ansiosas por falar sobre como colaboraram indiretamente, e sobre que limite teria sido imposto.
    "O sucesso de qualquer companhia se baseia não apenas no valor dos produtos que oferece, mas também no nível de confiança que seja capaz de estabelecer", afirma Adriano Farano, cofundador da Watchup, produtora de um aplicativo que personaliza vídeos jornalísticos. "O que está em jogo é a credibilidade de um ecossistema".
    E trata-se de um que depende de dados pessoais.
    Novas tecnologias como o Google Glass avançam por territórios que até recentemente eram inatingíveis. De grandes empresas a novas companhias, o setor de tecnologia fervilha com planos para recolher os dados mais íntimos de seus usuários e usá-los para vender coisas.
    "Estamos pressionando o governo a nos proteger, mas também colocamos mais e mais informações sobre nós mesmos em lugares que permitem que outras pessoas as vejam", diz Christopher Clifton, cientista da computação da Universidade Purdue que pesquisou sobre métodos de coleta de dados que preservam a privacidade. "O fato de que parte desse todo será estudado pode perturbar, mas não surpreende", declara.
    O presidente Barack Obama, tentando atenuar os protestos, diz que os alvos do programa são cidadãos estrangeiros, e que vale a pena ceder um pouco de privacidade em troca de segurança.
    PROBLEMA ANTIGO
    Mas o monitoramento de dados é um problema que estava por surgir há tempos.
    As grandes fabricantes de computadores sempre venderam sistemas ao governo e empresas iniciantes de toda espécie sobrevivem com informações pessoais. Por outro lado, as companhias sempre tentaram evitar regras governamentais que restringissem sua visão --e seus lucros.
    Em 1999, Scott McNealy, presidente-executivo da Sun Microsystems, resumiu a atitude do Vale do Silício quanto aos dados pessoais com uma declaração que define o "boom" da internet: "Você tem privacidade zero. Pare de se incomodar com isso."
    McNealy não retira o comentário, ou não todo ele, mas diz que hoje se preocupa mais do que no passado sobre possíveis abusos.
    Ele, porém, argumenta que os fabricantes de computadores têm alguma responsabilidade pela criação do estado de vigilância. "É como culpar os fabricantes de armas pela violência ou uma montadora pelos motoristas embriagados". O problema real, ele diz, é "o avanço no alcance do governo. Acho ótimo que eles estejam tentando identificar o próximo terrorista. Mas já imagino se isso significa que vão me bisbilhotar."
    Aaron Levie, fundador do Box.com, sistema de compartilhamento de arquivos, brincou no Twitter que o Prism apenas reuniu em um mesmo local todos os dados do Gmail, Google, Facebook e Skype. "A NSA chegou antes que cerca de 30 startups com essa ideia", escreveu.
      ANÁLISE
      Rede está virando uma ferramenta de vigilância
      RONALDO LEMOSCOLUNISTA DA FOLHAO escândalo do acesso a dados de usuários por parte do governo do EUA reforça uma constatação cada vez mais evidente: a internet (e outras redes) estão se convertendo em sistemas massivos de vigilância.
      Os EUA enfrentam agora uma situação paradoxal. A ex-secretária de Estado Hillary Clinton rodou o mundo disseminando a ideia de uma paz americana para a rede. Ela enfatizou seu papel para a democracia, citando as revoluções árabes. Enquanto o discurso acontecia, nos bastidores, os EUA punham em prática seu sistema secreto de vigilância, de fazer inveja às posturas da China. Fica a impressão que os EUA foram libertários no discurso e liberticidas na prática.
      Para que a internet não se transforme em máquina universal de vigilância, o único antídoto é a lei. Somente ela pode impor limites ao uso desenfreado. Nem a política, fatores econômicos ou a própria tecnologia são capazes de prevenir o crescimento do "panopticon" digital.
      Por essa razão, as constituições democráticas estão sendo postas à prova. O que significam a proteção à privacidade, as liberdades civis e o devido processo legal quando aplicados à internet? A justificativa de Obama foi que, nos EUA, todo o sistema foi aprovado antes pelo Congresso e que mudanças deveriam receber o mesmo aval.
      Já no Brasil permanece um grande vácuo legislativo. O Marco Civil da Internet, projeto que visa a proteger os direitos dos usuários com relação ao tema, permanece parado na Câmara.
      Enquanto isso, o vazio é preenchido pela Anatel. Em agosto de 2012, a agência outorgou-se poderes para acessar diretamente os registros das chamadas telefônicas de todos os usuários no país. Em maio de 2013, por meio de resolução, obrigou os grandes provedores de internet a guardarem todos os registros de conexão dos usuários por um ano. A justificativa é, respectivamente, fiscalizar a qualidade dos serviços e coibir crimes.
      Mas pode a Anatel regulamentar questões tão complexas por meio de resolução? Não seria esta uma competência privativa da lei? São questões que, tais como muitos aspectos do escândalo nos EUA, permanecem sem resposta em nosso país.

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