Celina Aquino
Estado de Minas: 17/07/2013
Estudar era um sacrifício para Luiz Carlos Madureira Martins, de 54 anos. O diretor de escola tinha dificuldade de concentração, sentia dor de cabeça diariamente, não suportava a claridade e ainda enxergava as letras em movimento. “Apresentação de trabalho e prova oral tudo bem, mas escrever me matava. Também não conseguia interpretar texto, a não ser que alguém lesse para mim, mas achava que isso era normal”, relembra. Tachado de preguiçoso, ele provou que não era falta de vontade: apesar do desgaste, formou-se na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e passou em dois concursos públicos. A vida de Luiz Carlos só mudou depois do tratamento para dislexia visual, um dos problemas de visão ligados ao cérebro. Ainda pouco explorado, o tema será discutido no primeiro Congresso Brasileiro de Neurovisão, que começa hoje e vai até sábado em Belo Horizonte.
“Achávamos que a visão só se relacionava com o olho, mas a neurovisão nos mostra que o ato de enxergar também está no processamento cerebral”, esclarece o oftalmologista Ricardo Guimarães, do Hospital de Olhos, um dos idealizadores do evento. Em torno de 90% do nosso cérebro processa informação visual, ou seja, não dá para dizer que um paciente tem visão normal apenas com o teste positivo das letrinhas. Comparando com uma máquina fotográfica, o especialista detalha que os olhos são as lentes. As células que processam as imagens estão no cérebro. Estima-se que de 15% a 20% da população mundial tem algum tipo de problema neurovisual.
Guimarães se interessou por neurovisão depois de perceber que algumas crianças apresentavam dificuldade de leitura que não eram explicadas pelo exame oftalmológico básico. Há cinco anos, ele propôs parceria com a UFMG para criar o Laboratório de Pesquisas Aplicadas à Neurovisão (Lapan), que hoje estuda os problemas de visão ligados ao cérebro e desenvolve equipamentos para diagnóstico. A equipe já treinou mais de cinco mil profissionais de saúde e educação, em 22 estados, para que possam a ajudar a identificar a limitação. “Só de saber que a criança tem uma dificuldade você deixa de puni-la achando que ela é preguiçosa. Muitas são colocadas para fora de sala porque não conseguem atender o comando do professor”, conta o oftalmologista.
Assim como Luiz Carlos, as crianças com problema de neurovisão costumam ter hipersensibilidade à luz, não gostam de ilusão de ótica, sentem náusea em movimento (andando de carro, por exemplo) e se queixam de dor de cabeça. Quase sempre são diagnosticados erroneamente como dislexos.
A neurocientista paraibana Caroline Costa Gomes Alencar, coordenadora do Lapan, entende que os médicos devem investigar causas neurológicas em crianças com queixas visuais que não têm indicação para usar óculos. “Cerca de 40% das pessoas com transtorno de aprendizagem têm um problema de neurovisão não diagnosticado, que passa despercebido, mas era fácil de ser resolvido”, pontua. É comum detectar problema de movimentação ocular. Um olho não consegue acompanhar o outro durante a leitura e as letras acabam se mexendo, o que provoca dor de cabeça. A especialista alerta que, quanto mais cedo chegar o diagnóstico, menor o impacto na vida escolar da criança.
RASTREAMENTO De acordo com Caroline Alencar, a limitação se manifesta de acordo com a área do cérebro afetada. Para detectar onde está o problema, o Hospital de Olhos submete os pacientes à técnica de sensibilidade ao contraste, usada há mais de 100 anos em laboratório nos Estados Unidos. “Ver letra pequena não é uma habilidade tão importante para a visão quando o contraste. É uma função totalmente cerebral, que não depende da estrutura do olho”, informa. Depois de analisar a maneira como a pessoa recebe os diferentes estímulos, é possível fazer uma varredura do funcionamento do cérebro. A área de bioengenharia do Lapan está desenvolvendo outros testes que consigam avaliar a localização e o grau do problema.
Há também testes sensíveis de rastreamento ocular. Usada como ferramenta de marketing, para descobrir, por exemplo, para onde o consumidor olha primeiro quando entra no supermercado, o equipamento agora aplicado na neurovisão acompanha os movimentos sutis dos olhos durante a leitura.
O tratamento também é bastante simples. “Como o cérebro é feito de neurônios, células que conseguem se recuperar em certo nível, quem tem lesão em algumas áreas pode apresentar melhora”, relata a neurocientista. Outra alternativa são filtros coloridos que podem ser colocados nos óculos ou nas lentes de contato. Caroline explica que, normalmente, o paciente tem sensibilidade a uma única cor, que não é processada corretamente e causa confusão. Usando a lente como bloqueio, as 300 crianças participantes de um estudo do Lapan alcançaram melhora imediata de 230% na qualidade da leitura, podendo compreender o texto. O acompanhamento deve ser anual, porque o cérebro precisa ser treinado.
Luiz Carlos Madureira Martins só descobriu a dislexia visual porque a filha, com os mesmos sintomas, recebeu recentemente o diagnóstico. Há oito meses usando óculos com lente azul, ele revela que está mais concentrado e tem mais facilidade para escrever. Até o humor melhorou. Na escola, o diretor fica atento aos alunos e incentiva os pais a buscar tratamento.
Vôce Sabia?
O daltonismo é um problemas visuais ligados ao cérebro. O defeito está nas células nervosas da retina que percebem as cores verde e vermelha.
Qualquer problema na primeira área do cérebro que recebe o estímulo visual pode provocar o que se chama de cegueira cortical, felizmente reversível. A pessoa não enxerga, mas tem os olhos intactos.
Pacientes com depressão de fato veem o mundo mais cinza. Quando você está com uma tristeza profunda, o sistema de transmissão no cérebro muda todo, inclusive para perceber as cores.
A ciência ainda precisa avançar para dar uma resposta definitiva, mas suspeita-se que os problemas de neurovisão venham do nascimento ou surjam durante o desenvolvimento da criança.
Ter dificuldade para subir escada rolante, dirigir ou ler um livro na fase adulta pode não ser estresse, frescura ou labirintite. Muitas vezes, a pessoa está com problema no processamento cerebral de imagens.
Nos Estados Unidos, os motoristas passam por teste de sensibilidade ao contraste. Mais importante que conseguir letras pequenas, é ter a capacidade de enxergar uma placa pouco nítida.
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