Dor e poesia
Primeiro Ato leva ao palco espetáculo
inspirado na realidade do Hospital Colônia de Barbacena. Montagem foi
criada em processo colaborativo entre o grupo e o coreógrafo Wagner
Moreira
Sérgio Rodrigo Reis
Estado de Minas: 15/08/2013
A
sensação inicial diante de Só um pouco a.normal, novo espetáculo do
Grupo de Dança Primeiro Ato, é de aflição. À medida que os bailarinos
tecem a narrativa em forma de gestos e movimentos inspirados na
realidade de Barbacena, para onde foram levadas por décadas as pessoas
que não se encaixavam nos padrões da sociedade, o sentimento ora fica
mais forte, ora se torna poesia. Ao final, o incômodo permanece,
passando a acompanhar por um bom tempo os que experimentam assistir à
montagem. A estreia do novo espetáculo será dia 23, no espaço do grupo,
no Jardim Canadá, em Nova Lima.
Só um pouco a.normal surgiu do
diálogo do Primeiro Ato com o coreógrafo Wagner Moreira, dentro do
projeto Tecendo encontros, iniciativa de intercâmbios artísticos nas
mais variadas áreas do conhecimento. Nascido em Barbacena, há 10 anos
ele vive e trabalha na Alemanha e, como dissertação de mestrado, se
inspirou na realidade do Hospital Colônia de sua cidade. Por oito
décadas, mais de 60 mil pessoas tidas como “indesejáveis” foram enviadas
até lá, onde a maioria morreu em situações degradantes. Eram
deprimidos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras,
alcoólatras, mendigos, negros. Wagner buscou referências nas histórias
narradas por familiares, vizinhos e amigos para compor a coreografia que
leva o espectador a sentir mais aquele clima do que a ver algo
explícito.
Nada é convencional em Só um pouco a.normal. A começar
pela estrutura da cena: o público assiste sentado, em cadeiras em volta
do linóleo, bem ao lado dos bailarinos Lucas Resende, Pablo Ramon,
Vanessa Liga e Verbena Cartaxo. Como não saem do alcance dos olhos, é
possível senti-los até ofegando e se transfigurando à medida que são
vencidos pelo cansaço dos intensos movimentos. Também é possível sentir,
diante do impacto da temática e das fortes cenas, como vão mudando as
fisionomias e os corpos, quando a situação fica mais tensa e dramática. A
ideia do coreógrafo foi partir das sensações não para discutir uma
patologia, mas transformar a fragilidade humana em poesia. “Quem pode
dizer o que é normal e o que é anormal?”, questiona.
A intenção
do espetáculo é unificar plateia e elenco, em estado de fragilidade.
Para tanto, utiliza elementos que se referem aos sofrimentos daqueles
que viveram atrás das grades do Hospital Colônia. Na coreografia, a água
do esgoto que muitos bebiam para matar a sede é lembrada numa das cenas
mais fortes, quando os bailarinos mergulham as cabeças em baldes num
instante aflitivo do espetáculo. Em outro momento, as referências ao
sangue dos milhares que morreram em vão em Barbacena aparecem quando
eles dançam entre pétalas de rosas vermelhas. Já os choques elétricos,
que eram usados como tratamento para levar os internos a um estágio de
letargia, surge em metáforas quando se ouvem tiros.
Suely
Machado, diretora do Primeiro Ato, conta que o processo de construção da
montagem resume bem a filosofia do grupo: trabalhar coletivamente. É
assim desde 1982, quando fundou uma companhia de dança em Belo Horizonte
para desenvolver trabalhos autorais. O processo atual parece, aos olhos
de fora, mais intenso. Quatro bailarinos atuaram como criadores.
“Apropriaram-se muito do trabalho”, analisa Suely. Os demais, que não
estão em cena, estão nos bastidores. Seja realizando luz, som e vídeo,
ou organizando os objetos de cena. O clima de colaboração é contagiante,
assim como o resultado do projeto. “O que achei legal foi o fato de não
ter retratado nem conceituado a loucura. Wagner criou uma poética da
diversidade inspirado naquela realidade. Tornou a fragilidade humana a
poética do movimento”, sugere a diretora do grupo.
A ideia do
coreógrafo foi propor situações e metáforas que pudessem levar o
espectador a ter referências sobre aquela realidade que o acompanha
desde sempre. “O tema da loucura em Barbacena é presente. O que me
assusta mais são os motivos que levavam as pessoas até lá, o fato de não
caberem na sociedade.” Ao transformar a reflexão em arte, optou por
colocar o espectador como espécie de lupa daquela realidade. “A plateia
pode ver tudo muito próximo, pois tiro a ilusão do espetáculo. Tudo é
baseado numa instabilidade, até para criar a sensação de linearidade.
Não podia dar sentido àquilo que não tem”, justifica.
Só um pouco a.normal
Dia
23, às 21h; 24 às 20h; e 25, às 17h, no EACC (Rua Búfalo, 261, Jardim
Canadá, Nova Lima). Ingressos: R$ 20 (inteira). O espetáculo abre a
terceira edição do projeto Tecendo encontros. Haverá ainda oficinas e
apresentações de coreografias do repertório. Informações:
http://primeiroato.com.br/tecendo-encontros e (31) 3296-4848.
Diálogos possíveis
O
projeto Tecendo encontros nasceu de um desejo de Suely Machado de
promover encontros de dança por causa da dificuldade de circulação no
Brasil. Prêmio da Petrobras Funarte Klauss Vianna de Dança, em 2012,
possibilitou três edições. A primeira foi com a bailarina Maria Alice
Poppe (RJ) e o músico Tato Taborda (PR). Realizaram uma oficina em
conjunto com os bailarinos e o resultado foram improvisações no Bairro
Jardim Canadá, inspiradas na sonoridade do entorno. Em seguida, a
parceria voltou a ocorrer, desta vez com o casal de coreógrafos Denise
Namura (SP) e o alemão Michael Bugdam. Ao fim do processo de troca
surgiu o espetáculo Pó de nuvens.
O encontro atual com Wagner
Moreira surgiu de uma conversa com Júlia Medeiros, produtora do Ponto de
Partida, de Barbacena. Ela contou sobre o trabalho de Wagner na
Alemanha e de como eram fortes naquela cidade do Campo das Vertentes
tanto as rosas quanto a questão da loucura. A diretora imaginou as
possibilidades do novo encontro e o convite foi feito. O resultado,
depois de quatro meses de imersão, é o que o público vai conferir em Só
um pouco a.normal. Para novas edições, o Primeiro Ato busca outras
parcerias.
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