'Mulher (...) reavê direito de dirigir'
'Haver' já teve o sentido de 'ter', como no provérbio 'Não hajas compaixão de quem tem cama e dorme no chão'
Estava na capa de um site de notícias na última segunda-feira: "Mulher que matou jovem reavê direito de dirigir". Certamente a maior parte dos leitores captou a essência da mensagem, mas há um "probleminha" na redação do título jornalístico. O caro leitor já sabe qual é?
Vamos lá. A forma "reavê" é flexão de qual dos nossos verbos? A julgar pelo que dizem as gramáticas e os dicionários, de nenhum; a julgar pelo "sexto sentido", esse "reavê" é do verbo "reaver", mais precisamente da terceira pessoa do singular do presente do indicativo.
A formação de "reaver" é óbvia ("re-" + "haver"). Esse "re-" é um conhecido prefixo latino, que, no caso, indica a ideia de "repetição". Assim como "refazer" significa "fazer de novo" e "recalcular" significa "calcular de novo", "reaver" nada mais é do que "haver de novo". O que foi mesmo que acabei de escrever a respeito do significado de "reaver"? Repito: "reaver" nada mais é do que "haver de novo". Acho que cabe um autoquestionamento: será mesmo pertinente a expressão "nada mais é do que..."?
Explico: quando se mencionam verbos como "refazer", "recalcular", "reconquistar", "rediscutir" etc., o falante imediatamente identifica neles a ideia de repetição, mas, quando se menciona o verbo "reaver", o falante identifica o significado ("recuperar a posse") e a ideia de repetição, mas não estabelece de imediato a relação desse verbo com "haver", o que talvez explique o emprego de "reavê", tentativa de "regularização" do verbo "reaver".
O verbo "haver" já teve entre nós o sentido de "possuir", vivo até hoje no francês, no italiano e no inglês. Sim, eu sei que o inglês não é uma língua neolatina, mas muitos de seus vocábulos (mais da metade) são latinos.
Como se traduz a célebre frase "I have a dream", de Martin Luther King? Lá vai: "Eu tenho um sonho". Esse "have" de "I have" é do verbo inglês "to have", que, além de ser usado como auxiliar, em tempos compostos, tem, quando verbo pleno, o significado de "possuir", "ter".
Se tomarmos o italiano, notaremos algo semelhante. No "Canto I" do "Inferno", de Dante Alighieri, encontra-se esta passagem, escrita no italiano da época: "...e dopo l pasto ha più fame che pria". Tradução (livre): "...e depois da refeição tem mais fome do que antes". O nosso "tem" é a tradução do "ha" que Dante empregou. Esse "ha" (sem acento em italiano) é do verbo "avere", que, como ocorre com o inglês "to have", é usado na formação de tempos compostos e, quando verbo pleno, significa "ter", "possuir".
O sujeito desse "tem" ("ha", em italiano) do "Canto I" do "Inferno" é uma loba, um dos três animais selvagens que Dante encontra durante a subida de uma colina. Na Idade Média, a loba simbolizava a avidez, a cupidez e a avareza.
Como já afirmei, "haver" já teve o sentido de "ter", "possuir", conforme se vê neste provérbio, citado por Celso Luft: "Não hajas compaixão de quem tem cama e dorme no chão" ("não hajas" = "não tenhas").
E o verbo "reaver"? Bem, já sabemos o significado e a origem; falta falar da conjugação. No padrão formal da língua, "reaver" é defectivo, ou seja, não tem conjugação completa. O verbo "reaver" só é conjugado nas formas em que o verbo "haver" apresenta a letra "v". Como o presente do indicativo de "haver" é "eu hei, tu hás, ele há, nós havemos, vós haveis, eles hão", o de "reaver" se resume às flexões "nós reavemos" e "vós reaveis". As outras quatro flexões (relativas a eu, tu, ele e eles) não existem.
Moral da história: no padrão culto, motorista nenhum "reavê" o direito de dirigir. Que fazer? Emprega-se uma forma de outro verbo ("recupera" etc.). É isso.
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