Ocupo esta tribuna hoje para pedir perdão. Banhei o manto da culpa nas águas do rio Jordão e de suas profundezas emergi purificada para expurgar publicamente meus malfeitos.
Leitor meu, eu pequei. Quantas vezes não usei este espaço para enfiar a mão na orelha do hip-hop, para criticar a pobreza das letras do rap, seu teor machista, violento e materialista?
Da mesma forma, nos anos 70 e 80, precisei ser contida para não queimar discos de Donna Summer e Gloria Gaynor em praça pública e para não vomitar dentro de minha própria boca diante de quem ousasse surgir na minha frente rebolando as músicas de "Grease" e "Saturday Night Fever". Esses tipos quase puseram minha juventude a perder.
Mas tudo isso passou, eu continuei firme nos meus Pink Floyd, David Bowie etc. até que um dia... Bem, até que meus olhos começaram a querer revirar a cada vez que alguém colocava "Brown Sugar" ou "Smoke on the Water" para tocar pela enésima vez. "How I wish, how I wish you were..." Tira essa joça, que eu prefiro a "Hora do Brasil"!
Para completar minha crise nervosa em razão da falta de renovação no cenário musical, surgiu uma turma de embusteiros neorromânticos imitando a Françoise Hardy e tentando me convencer de que basta cantar em francês e vestir calça pula brejo para dizer que a inocência dos anos 60 está de volta. Pois sim. Arranco-lhes os botões abotoados de suas camisetas polo a dentadas e ainda mostro a eles a pureza dos anos dourados incrustada lá dentro da boca cheia de dentes da Hello Kitty, nerds falsificados, cantores de batizado. Pois é, a Hello Kitty não tem boca.
Eu vou lá querer, em 2012, ouvir música sem pulsão sexual, sem batida e sem eletrônicos? Olha, que eu chamo a Beth Ditto para arrancar e pisotear os óculos desses calminhos todos, hein? Tadinha da Beth, perdida...
Aí que entra meu pedido de desculpas. Na falta de tu, vai tu mesmo, cansada de repetir playlist e sem alternativas, a burguesinha que se chocava com a falação dos Tupacs, na linha de: "Sua cadela, enfio um tiro na cabeça do seu gangsta e roubo seus cartões de crédito pra andar de Ferrari e depois mato todo mundo", intercalada por trechos de sucessos chupados sem nenhum pudor de, digamos, Otis Redding, porque vale tudo, passou a prestar atenção.
Puxa vida, vivemos na era da apropriação amigável em que a internet empurrou direitos autorais contra a parede, o plágio foi jogado na latrina pela "menção" e a "homenagem" puxou a descarga, não é?
A questão não está resolvida e a resposta vale zilhões de dólares. Enquanto isso, hip-hop é a única linguagem musical cuja sintaxe e sotaque estão em sintonia com nosso tempo. Percebi 20 anos atrasado, fazer o quê?
De tanto treinar o ouvido (não ouço outro tipo de música já faz algum tempo -como comida japonesa, trata-se de um gosto adquirido), comecei a perceber nuances, humor, erotismo, romance, enfim, uma vida outra não tão vulgar e desesperançada, da qual eu não me dava conta quando só me preocupava com minha própria indignação.
A riqueza da junção musical entre o funk, o R&B e (admito) o new disco, a raiva nas letras, panquecas musicais sobrepostas e mixagens intrincadas convivem. São elementos que não se encontram em nenhum outro gênero. House, dance, lounge, fica tudo no chinelo.
Não pretendo explicar. Seria como enviar de Belém um texto falando sobre o nascimento do Redentor depois da crucificação e ressureição de Cristo.
O objetivo aqui é pedir sinceras desculpas por ter agido como uma troglodita e mostrar que existe como abrir a cabeça de matracas arrogantes como eu.
Quem sabe não seja possível fazer são-paulinos evitarem de torcer contra o Corinthians em torneios em que nem sequer estão inscritos?
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