Estado de Minas - 26/01/2013 Jean-Louis Trintignant: um rosto devastado por verdades |
Todos os homens são mortais. Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal. O silogismo mais conhecido da história da lógica atravessou os séculos e parece que ainda não foi compreendido em sua essência. As pessoas entendem a concatenação interna do argumento, as duas premissas e a conclusão, mas parecem que denegam o sentido. Ninguém quer saber da morte pessoal. A de Sócrates, tudo bem, mas a própria morte é um tabu que paralisa a inteligência e a emoção durante a maior parte da existência. Apenas em momentos muito especiais somos atravessados pela certeza da aniquilação.
O filme Amor, do diretor austríaco Michael Haneke, possibilita um desses instantes de amarga consciência. Por isso tem sido tão falado, discutido e até mesmo evitado. Há muita gente que, sabendo da história, não quer ir ao cinema. A obra de Haneke não perdoa, machuca. Cineasta da crueldade, no limite do sadismo, ele faz questão de explicitar regiões que ficariam melhores silenciadas, como a capacidade de fazer o mal que parte do grupo e a perversão sexual que nos habita. Com Amor ele chega ao limite mais extremo e nos oferece, sem redenção, uma certeza mais dura que a morte: o morrer.
Depois de ganhar vários prêmios e ser indicado a outros, inclusive o Oscar nas categorias de melhor filme e melhor filme estrangeiro (como a mostrar a ambiguidade de ser ao mesmo tempo universal e singular), Amor se tornou um tema de reflexão, um objeto artístico incontornável, que não pode ser reduzido às categorias estéticas sem deixar vago o espaço que cobra em termos de filosofia e meditação intelectual e política.
Não basta falar do roteiro, das estupendas interpretações de Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva e Isabelle Huppert, da direção de Haneke. Fica sempre de fora o tema da morte e suas ligações com vários fios que partem da existência em direção ao nada: a dor, o abandono, as perdas, a carência, a solidão. Como a remarcar as parcas certezas que nos definem, Amor primeiro tira o sentido da vida, depois acrescenta a perda da dignidade do espírito para completar com pura aniquilação da carcaça.
É claro que essas reflexões vão sendo construídas por meio de elementos estéticos e de pensamento, o que torna o filme uma obra de arte, mas a materialidade da mensagem parece por vezes se destacar do filme para atingir diretamente a consciência. Há níveis diferentes de compreensão que cercam a experiência de assistir a Amor. Talvez essa via, tateante e complementar, ajude o espectador a se aproximar do filme.
Fronteira
A primeira sensação é de desterro. Amor é um filme sobre outro mundo, ao qual não fomos convidados a entrar. A sensação de acompanhar, como um voyeur, a decadência física e intelectual da personagem de Emmanuelle Riva parece confirmar a exterioridade da morte, sempre uma experiência do outro. Naquele mundo não nos cabe adentrar. O casal, tão logo percebe o caminho que a eles se abre de forma incontornável, vai se afastando das outras pessoas. No território da morte não há visitantes.
O casal, em seu belo apartamento em Paris, sem luxo mas com marcas de longa convivência com seus cantos prazerosos e áreas desabitadas, vai se desapegando dos vizinhos, dos amigos, dos alunos de piano e até da família. Para esperar a morte com sua força totalizante, nada pode interferir, nem mesmo as demandas do mundo real. O personagem de Jean-Louis Trintignant, numa postura quase ciumenta, chega a vedar o acesso à mulher, recusando à filha o direito de partilhar de uma experiência que vai se tornando cada vez mais sua.
O roteiro, com suas elipses, vai também esvaziando o sentido, como se o filme passasse a ser embalado por uma mente em processo de dissolução. Se o primeiro contato com a fraqueza da mulher é cercado de raiva e estranhamento, à medida que as perdas se avolumam a narrativa se torna afásica, vazia, à cata de sentido num mundo habitado por vazios da memória. Quando o apartamento do casal se torna o mundo por antonomásia, o único contato com o exterior é feito por uma pomba, que voeja pelo apartamento com a inconsciência típica das pombas.
A interpretação dos atores ganha destaque por motivos artísticos e extracinematográficos. Poucas vezes se viu no cinema um trabalho com tanta potência na expressão da fraqueza. Há uma entrega absoluta. Emmanuelle Riva, a inesquecível Elle de Hiroshima, mon amour, filme de Alain Resnais, de 1959, com uma beleza de impressionante dignidade, vai se desfazendo frente ao espectador, seja na tradução física de suas fraquezas, seja no desconsolo que emana de sua figura sem alma, quase só corpo, na mão de cuidadores e do próprio marido.
Jean-Louis Trintignant, rosto conhecido de clássicos como Um homem, uma mulher, Z e O conformista, está devastado e carrega, além do personagem, os sofrimentos e limites de sua própria vida. O diretor chegou a dizer que o ator pensava em suicídio quando aceitou fazer Amor. O personagem, que parece a princípio marcado por certa reserva e dureza, vai ganhando uma suavidade que não ameniza em nada a aura de dor que parece carregar. Com o tempo, ele se torna um artífice da morte, seu servidor mais denodado.
Sociedade
Drama pessoal, Amor é também uma história que tem consequências sociais e políticas. Não há como deixar de pensar no nosso próprio fim e de que maneira vimos nos preparando para enfrentá-lo. Haneke tem a sábia intuição de localizar sua história num cenário materialmente resolvido. Dinheiro não parece ser problema e, com isso, toda a atenção sobre a velhice e a morte recai exclusivamente sobre as pessoas e suas emoções.
No entanto, a entrada da filha em cena, com sua fúria que parece desmedida e artificial, é baseada na relação com o dinheiro. A primeira conversa que ela tem com a mãe, já bastante prejudicada pela doença, trata de investimentos e propriedades, como se este fosse o mais humano dos assuntos. Ela não entende como a mãe pode se alienar desse tema, aparentemente interessante.
Em outro momento, a demissão de uma cuidadora mostra que há limites naquele arranjo, que o outro vai se tornando cada vez mais necessário, quanto mais a solidão parece ser um destino tão desejado. Essa constatação parece apontar o dedo para o espectador, seja na antevisão de sua própria velhice, seja nos cuidados que se esperam dele quando chegar a vez das pessoas que fazem parte de seu círculo de afetos. Nessa hora, nem mesmo a grana vai nos salvar.
Não é um acaso que a palavra amor, que nomeia o filme, ganhe materialização no gesto mais violento e distante como o qual costuma ser emparelhado. No território próprio da morte, com sua solidão e silêncio, o amor se reveste de outro sentido.
E-mail: jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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