segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Luli Radfahrer

folha de são paulo

"Papai, o que é a Internet?"


...pergunta a Duda durante o café da manhã. Surpreendido mas não impressionado pela enormidade da pergunta feita por sua filhota de seis anos, o pai engasga, pigarreia e responde sem dobrar o jornal, com o chavão que se acostumou a usar quando se refere à rede:
- "Internet é a rede mundial de computadores, filha."
Duda se cala por um instante e o pai sabe que daí não costuma vir coisa boa. Olha furtivo para a mãe que, estrategicamente, resolve dar uma saída. Só com a Duda na cozinha, o silêncio parece interminável. O pai tenta se concentrar nas notícias mas não consegue. Ansioso, espera o torpedo. Este não tarda:
- "O que é um computador?"
- "É uma máquina que faz cálculos, processa e transmite informação."
- "Como uma torradeira?"
Estava demorando. Nascida em 2020, ela não faz ideia do que significa a palavra "analógico". Se viu algum PC, notebook ou smartphone, não registrou sua presença. Tudo à sua volta computa e se comunica, não faz sentido uma máquina voltada exclusivamente para essa tarefa. O pai tenta consertar a situação, embora já sabendo que não encontrará saída para o debate.
- "Não, muito mais sofisticado. Computadores ficavam nos escritórios, e eram usados para se trabalhar."
Enquanto a Duda pensa, o pai percebe o absurdo da frase para a cabeça da pequena. A ideia de um escritório lhe parece de repente mofada e arcaica. Como explicar para ela que era normal há menos de uma década passar horas à frente de teclados e monitores, sentado em cadeiras e mesas desconfortáveis, desenvolvendo tendinites e lesões diversas de esforço repetitivo ao preencher páginas de texto, planilhas e apresentações gerenciais? Ou gastar horas no trânsito a caminho de um lugar estéril e político, só para lá perder mais tempo com papos inúteis e reuniões não muito melhores? Agoniado a pensar na resposta, o pai deixa cair café no seu jornal. Irritado, leva-o até a pia para lavar e torcer a tela. Nem bem levanta, ele ouve:
- "Isto aqui é um computador?", pergunta ela apontando para seu pulso.
E agora? É e não é. Aquela maquininha faz tanta coisa que é difícil imaginar a vida sem ela: tira a temperatura, mede a umidade da pele, verifica a glicemia, pressão, colesterol e mais de trinta outras medições a cada hora. Além disso ela fotografa, projeta vídeos, ensina, cria redes de comunicação, traduz conteúdos, localiza objetos, faz ginástica, vende produtos, liga brinquedos, controla eletrodomésticos e ainda faz companhia nas horas de tédio. Ela responde a comandos de voz, conectada aos verdadeiros computadores distribuídos em prédios sabe-se lá onde. Quando a pulseira veio de graça com o material escolar, o pai desconfiou. Mas aos poucos acabou por se acostumar com o aparelho, a ponto de se perguntar se pegaria mal para ele ter um bracelete desses. Na esperança de encerrar a conversa, ele concorda com a filha.
- "Isto aqui também? E isto? E isto?" Empolgada com a palavra nova que aprendeu, a Duda corre pela cozinha tocando em aparelhos que o pai, quando tinha a idade dela, costumava chamar de geladeira, fogão, pia... para tentar diminuir a confusão, ele traz a pequena para seu colo, explicando:
- "Na verdade essas máquinas não são computadores. Elas não tem nome, ou usam o nome dado por gente da minha geração. Suas antenas mandam sinais recolhidos por elas para uma grande máquina, que toma decisões por elas. Isso é que é um computador". Satisfeito com a explicação, o pai acredita que isso deva acalmar a pequena. Doce ilusão. Mal a colocou no chão, ouviu dela a pergunta:
- "O que é uma geração?"
- "Mas que raio de pergunta é essa? Uma geração é... bom, é um período de tempo, normalmente uns trinta anos, que separa crianças de adultos. Pessoas de uma geração costumam ter dificuldade para entender as outras gerações" responde o pai, com ajuda do dicionário instantâneo.
- "Quer dizer que o Pedro é de outra geração?" pergunta ela referindo-se ao velho primo com seus intangíveis quinze anos.
- "Não, o Pedro... quero dizer... bom... para mim, você e o Pedro são da mesma geração, mas eu entendo que para você ele pode parecer..." não deu tempo de terminar. O bracelete troca de cor e a parede da sala se transforma em escola. O pai aproveita a folga para sair.
Na rua, ele não consegue parar de pensar na conversa e de repente se sente nostálgico. Justo ele, um defensor da Economia da Informação e da Convergência desde a época em que essas palavras significavam algo. "Como era o termo que se usava?" "Paradigma", lembra-se, rindo. Não demora para lembrar de outras velharias como "Tempo Real", "Cauda Longa", "Website"... relíquias de uma época em que alguns davam-se ao luxo de viver fora das redes, sem telefones, lenços ou documentos. Ele, que nunca viu sentido nesse comportamento pária, identificou-se pela primeira vez com os excomungados digitais, percebendo que havia naquele comportamento selvagem e eremita um desconforto instintivo com o excesso de informação.
O pensamento até o levaria mais longe, se não fosse interrompido por um gentil tremor em sua canela: estava na hora de voltar a trabalhar.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

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