Em 1923, quando Mário de Andrade soltou-se na folia carioca, a "Cigarra" defendia a festa paulistana
Numa carta de 1939, endereçada a Sérgio Milliet, Mário de Andrade lembrava, com melancolia e alguma ambiguidade, o ataque cardíaco sofrido por seu pai, em fevereiro de 1917 -uma fatalidade que impediu o escritor de aproveitar a folia carnavalesca. "Quando meu pai ficou doente, eu estava me preparando pra ir num grande baile de Carnaval", contava ele na carta ao amigo. "Minha tia me dera um cetim verde-alface sublime e caríssimo. Eu mesmo desenhei um pierrô miraculoso." O traje já "estava passadinho, num manequim, no meu quarto", quando aconteceu a infelicidade que o impediu de usá-lo.Mário, que estava com 23 anos quando perdeu o pai, teve tempo para se esbaldar nas loucuras momescas -o que fez, aliás, com satisfação, tanto em São Paulo quanto no Rio. Em 1923, já autor de "Pauliceia Desvairada", jogou-se pela primeira vez na farra carioca e babou, como se pode ver no longo poema "O Carnaval Carioca", daquele mesmo ano.
A descoberta do Carnaval do Rio foi, aliás, um acontecimento vital, mas também conceitual, para os modernistas de São Paulo, que viram na manifestação multicolorida, erótica e miscigenada um índice pujante da brasilidade. No "Manifesto Antropófago", publicado em 1928, Oswald de Andrade, como se sabe, lançou a famosa sentença: "O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça".
Não que fosse desanimada a festa paulistana daqueles tempos. Havia corsos, cordões e bailes de fantasia; a imprensa dava destaque, publicava fotos, notas, crônicas. Havia a diversão da "elite branca", com influências venezianas e europeias, e a festa negra, em seus redutos, onde se tecia o samba paulista.
No mesmo ano de 1923, em que Mário se entregou à "invasão furiosa das sensações" na "pagodeira" inesquecível da Guanabara, a revista "Cigarra" rebatia críticas à suposta "falta de espírito" da festa paulistana, dizendo que era argumento velho e falacioso: "Quer na avenida Paulista, onde o corso esteve brilhantíssimo, quer na avenida Rangel Pestana, para onde toda a população alegre se dirigiu, e em toda parte, o Carnaval não teve diques nem limites", dizia um editorial sobre a festa. Além de tudo isso, e das disputas de "serpentina, confetes e tubos de perfumes", a revista defendia seu argumento lembrando que "nada menos do que cinco clubes carnavalescos saíram à rua com suas alegorias".
Um cronista também contava, em tom farsesco, que até mesmo um "Cordão Literário" teria passado a todo vapor pelo centro da cidade. Segundo o relato, um grupo estava reunido na Redação da revista quando foi surpreendido por "palmas estrepitosas" que vinham da rua. Correram à janela para ver o que se passava e constatou-se que "ali estavam, fantasiadas, as letras paulistanas quase em peso". Do poeta Vicente de Carvalho a Monteiro Lobato, que, segundo a descrição, brincava "fantasiado de si próprio, isto é de Jeca, com chapéu de taquara e cigarrão atrás da orelha"...
Sábado passado, andei pela Vila Madalena. Vi, em galerias, obras que Lobato decerto não gostaria e, pelas ruas, gente fantasiada para brincar com um festejado bloco que só toca música dos Beatles. Não pude deixar de lembrar do refrão de uma música da pernambucana Lulina, em que uma garota paulistana repete, com seu sotaque característico: "Puta meu, tipo a nossa cara!".
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