Luiz Gonzaga, ao lado de seus parceiros
mais constantes, como Zé Dantas e Humberto Teixeira, criou novo caminho
para a cultura brasileira a partir dos anos 1940, com influência que
chega até nossos dias
Bené Fonteles
Estado de Minas: 23/03/2013
Luiz Gonzaga sabia de
cor e coração a cartografia ambiental e sentimental do povo e do sertão
nordestino. Por isso, naturalmente deixou fluir e influir uma lírica
poética que vestiu os versos tantos de seus muitos parceiros “cheirando a
bode”, como ele achava que cheirava Zé Dantas. Por certo, Dantas foi o
parceiro que mais sentido deu às coisas sertanejas e que, pelo
conhecimento vivido, soube traduzir costumes, sentimentos e ambiências
de um interior que não era só paisagem, mas o dentro do coração dos
nordestinos. As canções da parceria com Dantas revelavam o corpo e alma
de um itinerário lírico que partia da voz dos cantadores, dos aboiadores
vaqueiros, dos poetas dos cordéis e emboladores nas feiras, das
carpideiras nos velórios e das cantadeiras nas novenas, muito advindo da
prosa e da poesia provençal vinda de herança da cultura ibérica e
moura.
É preciso também ir fundo no canto dos menestréis
nordestinos que povoaram essas mesmas festas e feiras, compuseram e
cantaram benditos e ladainhas nas missas, novenas e procissões, com e
para as beatas, recitaram versos nos dramas e outros eventos públicos
sagrados e profanos, para chegar até o cerne e a origem do que Luiz
Gonzaga sintetizou, recriou e vestiu com sua rica verve interpretativa.
Gonzaga
nos encantava de forma singular, vestido de sua própria identidade,
mais que regional, “entidade universal brasileira”, como bem disse Mário
de Andrade. Entidade de sertanejo que existe e resiste em Cabrobó ou na
Bretanha francesa. Não é à toa que Guimarães Rosa prosou um dia que
sertão está em toda parte e mais no dentro da gente mesmo. Portanto, a
roupa arquetípica criada por Gonzaga nos veste a todos, nos autoriza a
uma linguagem universal que transcende limites regionais e tacanhos.
A
universalidade das letras que seus parceiros versaram dos anos 1940 aos
1980 poderiam descrever e potencializar uma literatura de um grande
sertão, veredas nordestinas insondáveis que ganharam amplas dimensões
culturais e espirituais, para revelar um Brasil menosprezado e oculto
por trás do preconceito da erudição acadêmica eurocêntrica, que ainda
rege nossos pretensos intelectuais.
Subestimar a cultura poética
de um povo matuto ou caipira é ir contra a sabedoria popular que
engrandece as nações. Antonio Candido, em sua primeira tese uspiana (Os
parceiros do Rio Bonito), prova o contrário, mostrando, por exemplo, que
o caipira falava e cantava um português castiço, de fonte erudita, de
um tempo fundador da língua e da poética portuguesa.
Afirmo que,
mesmo que nada sobrasse de material sobre a terra brasileira, a vasta
obra musical e interpretativa da qual Luiz Gonzaga se apropria e recria
certamente traça uma cartografia que contempla a geografia ecológica de
inúmeras localidades, descrevendo sua cultura paisagística do Riacho do
Navio ao Rio Pajeú, do Rio Pajéu ao despejar no Rio São Francisco, e do
Velho Chico a desembocar no meio do Mar Atlântico, descrevendo uma
trajetória sintética e sincrética de muitas culturas amalgamadas por
milhões de almas ribeirinhas ou barranqueiras que amam a figura plural e
original de Gonzaga.
Esta cartografia anímica e lúdica traça os
mapas da religiosidade fanática, fervorosa e autêntica que herdou de sua
mãe, Santana, cantadora de benditos e ladainhas nas novenas da Fazenda
Caiçara, e canta também a fauna e a flora de como nunca se imaginou na
música feita no país. Só muito depois a natureza seria reverenciada na
música de Tom Jobim, que também compôs baião e de quem Luiz Gonzaga
gravou magistralmente a toada Caminho de pedra, da parceria com Vinicius
de Moraes.
Tomemos, então, por referência, as aves asa branca,
assum preto, acauã, fogo-pagou, carimbamba e outros inúmeros pássaros
que viraram tema de canções extraordinárias, que servem de pretexto,
mote e metáfora para falar de relações amorosas, saudades e lamentos
sertanejos, desejos e sentimentos vários de sede de companhia e vasta
solidão que o sertão verte à beira das estradas e, dentro dele, da
caatinga ao semiárido.
Assim, como os pássaros canoros, as
tantas árvores que a música Juazeiro exemplifica muito bem, de forma
pungente e emocionante, em que o verso fala da sombra em que conversavam
um ela e um eu que todo mundo tem dentro de si, na vontade de amar e de
se reconhecer no outro.
Também a religiosidade atávica presente
nos versos de muitos parceiros demonstrando a fé, a fé gonzaguiana
inabalável no que fazia e acreditava ser e ter em tantas canções
dedicadas a padre Cícero, frei Damião, Nossa Senhora, São João do
Carneirinho, este o padroeiro da localidade cuja imagem era a primeira
de santo que viu, na pequena capela da Fazenda Caiçara, onde nasceu, e
que tanto lhe encantou o imaginário até que virou baião. Esta imagem foi
o ponto de partida de todo o seu imaginário de fé religiosa, um São
João icônico, que ele viu subir nos mastros coloridos junto a muitas
fogueiras e forrós pé de serra e, a partir do Nordeste, contagiar o Sul e
todo o Brasil, que no fundo é também sertanejo, da Amazônia à caatinga,
do cerrado aos pampas.
Nordestinados Os
letristas também dão voz a sentimentos arraigados na vocação ancestral
de Luiz Gonzaga em recriar ou reinventar um Nordeste que até então era
menosprezado pela cultura e pela política entre os anos 1940, 50 e 60.
Ele – que segundo Câmara Cascudo não é o sertão, o sertão é que é ele –
vai dar voz ativa a um povo, uma voz do Brasil oculto, mas nunca inculto
e pobre. Ele é a voz do Brasil, dos exilados migrantes vindos para o
Sul tentar outra sorte sem “vidas secas”. Gonzaga é o cantor do exílio,
da minha terra que tem carnaúba e onde canta o acauã, e cujas aves que
aqui gorjeiam não só gorjeiam, mas, como no baião Fogo-pagou,
alimentaram muita fome severina.
Gonzaga deu voz a uma canção
emblemática de Patativa do Assaré – o poeta máximo do Nordeste caboclo
–, que é Triste partida, verdadeiro hino e miniépico desta migração de
nordestinados para virar mão de obra barata, quase escrava, na
construção civil de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo
Horizonte, ou no trabalho também árduo da lida doméstica destas mesmas
cidades e das tantas das periferias dos Brasis.
São esses
nordestinos que vão sentir e se identificar com a lírica gonzaguiana,
ambientada em uma cartografia leal e sentimental, a cultura íntima de um
povo ainda não consciente dos valores culturais que Gonzaga vai realçar
e divulgar para o mundo. São eles que vão consumir e ampliar a
literatura musicada e cantada com força de peito aberto por todo um
Nordeste, que vai perpassar as favelas cariocas e paulistas. Um Nordeste
ainda não visto em sua poética rica de verve e ritmos, ainda não
sentido e estimado em suas amplas manifestações culturais e espirituais.
Releva-se
daí uma poesia impregnada do barro do chão, nascida nos anos 1940 junto
de Gonzaga e do cearense de Iguatu Humberto Teixeira, ampliada pelo
pernambucano de Carnaíba Zé Dantas, rediviva no também pernambucano de
Sumé Zé Marcolino, e noutros nordestinos de cepa, como o pernambucano de
Arco Verde João Silva, seu maior parceiro em número de canções.
Houve
outros tantos poetas, até então anônimos, nos quais descobriu talentos
para dar corpo e sentimento a essa cartografia lírica, anímica,
ambiental, espiritual, elevando a cultura do Nordeste ao patamar mais
alto da alta cultura brasileira. Queiram ou não.
Nova geografia musical
Bené Fonteles
O poeta Zé Dantas é
parceiro de Gonzaga em duas canções viscerais: uma na poética da
denúncia que é Vozes da seca, a primeira canção que poderíamos chamar de
protesto, mais de uma década antes que Geraldo Vandré, Sergio Ricardo
ou Carlos Lira lançassem suas músicas contra a ditadura militar e a
grave situação social no país. Vozes da seca é a primeira canção que dá
voz ao cidadão nordestino que não quer esmola, mas trabalho digno e
justiça social: “Mas doutor uma esmola/ a um homem que é são/ ou lhe
mata de vergonha/ ou vicia o cidadão”.
É também de Zé Dantas a
letra de Siri jogando bola, inspirado nas emboladas dos cantadores nos
desafios públicos, letra que requer do intérprete agilidade e destreza
vocal que só Gonzaga e o genial paraibano Jackson do Pandeiro possuíam. É
uma letra que fala pela primeira vez em Coca-Cola, que “dá um arroto de
lascar”, muito antes de Caetano Veloso, que apenas tomava-a na
marcha-rancho modernizada Alegria, alegria.
Zé Dantas só não
engoliu o pão que o capeta amassou, quando o apresentador de TV Flávio
Cavalcante quebrou o disco com a gravação de Gonzaga em seu polêmico
programa, porque Dantas, médico culto, escreveu artigo em jornal carioca
mostrando, com elegância, a ignorância do apresentador que subestimou a
importância da letra e da música criticada para divulgar um ritmo e uma
poética do Nordeste. E tudo com grande inovação de linguagem e uma
interpretação genial e gostosa, que só Gonzaga tinha sabedoria
interpretativa para aliar à poesia ou à música alheia, com sua verve
criativa cheia de improviso e falas inesperadas, antes que o rap e o
hip-hop invadissem a cena contemporânea.
Humberto Teixeira quando
se encontra com Gonzaga, em 1947, faz com ele, de uma sentada, muitos
baiões, xotes e xaxados, como Baião, verdadeiro manifesto musical em que
se ensina como dançar o ritmo e lança o movimento cultural nordestino
tão importante como seria décadas depois a bossa nova dos cariocas e a
tropicália dos baianos. Sim, porque foi tudo muito bem arquitetado pelos
dois - Gonzaga e Teixeira –, para ocorrer o que Sivuca, anos mais
tarde, chamaria de “operação inversa”, ao trazer a música, os ritmos e
os costumes nordestinos para o Sul, via indústria radiofônica e
fonográfica, casadas para ditar a moda para todo o Brasil, como hoje faz
a TV.
Os dois parceiros trouxeram com poética consistente os
valores culturais e espirituais escondidos por décadas de omissão da
cultura oficial sulista, como fez a política do Estado Novo com a também
genial Carmem Miranda, com sua baiana estilizada para dar boas-vindas à
política da boa-vizinhança com os Estados Unidos.
Seria então
inaceitável a personagem emblemática que Gonzaga criaria nos anos 1940,
juntando a figura do cangaceiro e do vaqueiro para representar este
Brasil nada folclórico e caricatural, que os americanos adoraram na
figura ousada, sensual e talentosa de Carmem Miranda. Gonzaga trazia a
poética do “cabra macho” como imagem, mas que cantava docemente e
sensivelmente suas dores de amores, carências e saudades de um sertão
que fora abandonado por eles por questões de sobrevivência.
Cariri
Gonzaga procura parceiros nordestinos do sertão brabo para dar sentido a
tudo que viveu na infância e em parte da juventude em Exu, a cidade
pernambucana vizinha ao maior celeiro cultural no Nordeste, que é a
região do Vale do Cariri, com três cidades referenciais para sua
família: Juazeiro do Norte, de padre Cícero; Crato e Barbalha, com
tradição forte de artistas e artesãos, poetas da melhor qualidade como
Cego Aderaldo e Patativa do Assaré, nascido não muito longe dali.
Gonzaga
com dois poetas das brenhas, Teixeira e Dantas, definiria todo o
conceito estético e poético de sua música e desse movimento cultural
nordestino que queria instalar na cena urbana sulista, e urbanizá-la não
só para conferir modernidade ao projeto, mas também para dar outra
dimensão cultural ao Nordeste. São estes dois parceiros, cheirando a
bode e a chão de barro batido, que lhe dão temas e versos viscerais e
definitivos para que seu reinado lhe desse fôlego de décadas e vencesse o
fatalismo da morte prematura. As comemorações dos 100 anos de
nascimento de Gonzagão revelam o que nenhum artista brasileiro até agora
teve de reconhecimento e homenagens, além de tantas recriações de sua
vasta obra.
Isto se compreende melhor quando sabemos que Gonzaga
influenciou e inspirou gerações de artistas dos mais importantes na
música popular brasileira surgidos desde os anos 1950, de Jackson do
Pandeiro a Siba, passando por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Geraldo
Vandré, Hermeto Pascoal, Alceu Valença, Fagner, Zé Ramalho, Geraldo
Azevedo, Chico César e Lirinha, todos tributários de um rio sem fim de
canções e gestos que vão além de tantos ritmos e tantas poesias.
Luiz
Gonzaga, enfim, é porta-voz de uma conjunção feliz de poetas que
recriaram o Nordeste, revelando uma literatura musicada ímpar no país e
talvez no mundo, que cantou e canta uma região nos seus detalhes mais
íntimos, com suas formas estéticas mais criativas e suas aspirações e
sonhos mais profundos.
Por isso, reina absoluto e sempre nas
noites mais belas de são-joão, em que anima festas na terra e no céu,
onde esplendem fogos e estrelas sem começo nem fim.
Bené Fonteles é artista plástico, poeta e compositor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário