Estado de Minas - 23/03/2013
Um
 dos fatos marcantes desta semana foi a divulgação de fotografias de 
calouros da Faculdade de Direito da UFMG em situação de constrangimento,
 com atitudes de racismo, fascismo e sexismo comandadas por alguns 
sorridentes alunos veteranos. Tratava-se do trote, uma instituição tão 
antiga como odiosa, que tem como “justificativa” o cumprimento de provas
 iniciáticas para que se configure o pertencimento dos novos postulantes
 a um lugar social de destaque. Com as mesmas explicações, atitudes 
semelhantes são observadas em outros contextos e sociedades. O que 
mostra que podemos ser ruins em matéria de humanismo em todos os lugares
 do mundo.
O que seria a repetição de um ritual ultrapassado e 
violento, cobrando ações de vigilância mais estritas e punições mais 
exemplares, no entanto parece simbolizar uma forma de autoritarismo que 
teima em deixar marcas numa sociedade pretensamente democrática e 
republicana. O que se viu guardado pelos muros da universidade foi uma 
atitude que repercute valores de exclusão social, discriminação, 
violência e certa arrogância de impunidade, dado o jeito orgulhoso com 
que os torturadores morais posam para fotos. 
Curiosamente, a 
imprensa de todo o país, mesmo condenando o ato, foi bastante 
condescendente com seus agentes, que, em atitude criminosa explícita 
(pelo menos racismo e cárcere privado – um estudante foi atado a um 
poste e outra acorrentada), tiveram seus rostos desfocados nas fotos, 
empenho que não se observa quando se trata de pessoas de outro meio 
social. Além disso, num exercício de negaceio, os crimes eram 
apresentados mais como decorrentes do sucesso do vazamento das imagens 
nas redes sociais do que por seu potencial de violência explícita. 
Essa
 ambiguidade talvez retrate alguns aspectos que caracterizam o 
autoritarismo brasileiro, que tem nítidos elementos de classe. Não somos
 mais autoritários que os outros, mas possuímos elementos de distinção 
que vêm se fortalecendo historicamente. O fato de o trote ter sido 
flagrado numa universidade pública (de acesso mais difícil) e num curso 
de direito (território da legitimação social) torna ainda mais 
significativo o viés classista, em sua utilização de signos como a 
escravidão e a saudação nazista, típica da nova direita, que recusa a 
convivência social com outras etnias e com migrantes.
O que 
caracterizaria o autoritarismo brasileiro, do qual a atitude dos alunos,
 em sua irresponsabilidade, seria um exemplo selvagem, sem mediação 
aparente da cultura e das normas internalizadas? Quem melhor dissecou a 
face tipicamente brasileira do nosso autoritarismo foi a pensadora 
Marilena Chauí, em textos que servem ao mesmo tempo como instrumento de 
análise, reflexão e chamamento ético à ação transformadora da sociedade.
Desigualdade Em
 primeiro lugar, o autoritarismo no Brasil parte da recusa da aceitação 
da igualdade. O mais básico dos princípios liberais, no país, se torna 
quase uma postulação política. A igualdade formal no Brasil é sempre 
coadjuvante da desigualdade das relações sociais. O que era para ser 
diferença é tomado, na prática social, como inferioridade. É o que 
explica a homofobia, o racismo e o machismo, observados todos os dias, 
e, num extremo de anomia, a capacidade de guindar um deputado 
confessadamente racista e homofóbico ao posto de presidente da Comissão 
de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados (o grave é que, no terreno 
da formalidade, tudo parece ser um desvio pessoal, quando se trata de um
 arranjo político que envolve todo o sistema representativo e a 
integralidade do processo de elaboração do ordenamento jurídico 
nacional).
O segundo aspecto do autoritarismo pátrio é a tradução
 do princípio anterior (a recusa da igualdade) numa impossibilidade 
prática de atitudes críticas e de contestação. Em outras palavras, 
marcados de nascença pela desigualdade estrutural, a sociedade traduz 
esse prejuízo em leis e atitudes (repressão) que tendem a naturalizar o 
que é uma violência social. As normas existem para preservar 
privilégios, a repressão tem a função de silenciar as camadas populares,
 o aparelho jurídico é estruturado para garantir vantagens históricas, e
 não para instituir novos direitos. 
Vem daí, por exemplo, a 
noção de democracia praticada no país, que fortalece o polo do consenso e
 criminaliza o do conflito. Democracia deveria supor os dois lados, o 
acordo e o debate. Assim, o exercício dos protestos, a agitação social 
contra as injustiças, as ações de ocupação de terras improdutivas e 
áreas urbanas com déficit de moradia são sinal de vitalidade 
democrática. No entanto, a resposta, em nome da democracia fundada nos 
acordos de interesses particulares, traduzida em consensos que deveriam 
ser reformados, é sempre o cumprimento estrito das atitudes de repressão
 contra aquelas ações.
O terceiro elemento do autoritarismo no 
Brasil, também identificado no caso do trote, é a indistinção entre as 
esferas pública e privada. Não parece haver no país uma percepção do 
público como espaço coletivo, mas apenas como terreno de exercício dos 
apetites privados de setores privilegiados. Do mesmo modo que o público é
 privatizado, o privado perde sua dimensão de intimidade quando serve 
aos interesses econômicos e políticos. Nosso autoritarismo é mestre em 
se apropriar do que é de todos e em invalidar a manifestação da 
individualidade dos cidadãos comuns.
Por fim, na lista de 
defeitos de origem do autoritarismo tipicamente nacional estão a 
naturalização das desigualdades, operadas a partir do consenso vicário 
oferecido pelos meios de comunicação, e o fascínio pelos sinas de 
riqueza, poder e prestígio. Para adentrar no território dos doutores (é 
impressionante como os advogados gostam tanto do título que se chamam 
entre si de doutores o tempo todo, até mesmo nas relações menos formais)
 é preciso merecer. O merecimento, no caso brasileiro, é dado pela 
submissão a todos os preceitos acima e até mesmo a provas bem menos 
nobres, como trotes e outras ações de constrangimento ilegal, entre elas
 o puxa-saquismo explícito, pragas das mais reincidentes.
Somos 
autoritários ao nosso modo. E, também com singular disposição, validamos
 a injustiça que daí decorre em vários momentos de nossa vida. 
Estudantes que se submetem ao vexame dos trotes apenas reproduzem, onde 
seria de esperar que estivessem livres em razão de sua posição social, 
atitudes consideradas justificadas na vida do trabalhador comum. São 
situações diárias, como a revista no local de trabalho, a ameaça à 
participação sindical ou política, a cobrança de comportamento evasivo 
em matéria de sexualidade, a exigência de silêncio frente aos inúmeros 
assédios morais, entre outros. Trotes invisíveis que humilham no dia a 
dia. Isso para ficar apenas no campo do trabalho.
A saída para o 
autoritarismo é um misto de denúncia tenaz e corajosa e de postulação de
 novos contextos de sociabilidade. Em outras palavras, de criação de um 
campo social de lutas que vá além do jogo viciado de um Estado 
sacralizado, de uma sociedade satisfeita em sua desigualdade, de uma 
política reduzida ao marketing narcisista e de uma democracia de meros 
procedimentos. 
A academia, que agora está no centro da roda com o
 trote dos acadêmicos de direito, tem obrigação não apenas de resolver 
essa questão de forma exemplar, como também de iluminar com conhecimento
 uma sociedade que permite tais abusos. Esse retrato não pode ser 
desfocado: é preciso que a universidade mostre sua cara.
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