Romance de Valter Hugo Mãe, O apocalipse
dos trabalhadores narra a história de mulheres presas à severa rotina do
trabalho doméstico e ao ofício de carpideiras
André di Bernardi Batista Mendes
O
português Valter Hugo Mãe, de 41 anos, foi o grande vencedor do Prêmio
Portugal Telecom de Literatura, anunciado recentemente. O livro A
máquina de fazer espanhóis recebeu duas premiações: a de melhor romance e
o Grande Prêmio Portugal Telecom 2012. O romance narra a história de um
barbeiro de 84 anos que, depois de perder a mulher, passa a viver num
asilo e revê sua trajetória. Acaba de chegar às livrarias O apocalipse
dos trabalhadores, terceiro romance do escritor publicado pela Editora
Cosac Naify.
O livro conta a história de Maria da Graça e
Quitéria, duas empregadas domésticas (ou “mulheres-a-dia”, como são
chamadas em Portugal) que, apesar do trabalho duro e da rotina
opressiva, mantêm as esperanças em uma vida melhor. O livro narra suas
desventuras amorosas: Maria da Graça envolve-se com seu patrão, que
considera o homem ideal; Quitéria, por sua vez, vive um romance com um
jovem imigrante ucraniano. Para incrementar o orçamento mensal, as duas
fazem bicos como carpideiras, e passam madrugadas velando defuntos
desconhecidos. O enredo não passa disso, é simples, como dois mais dois.
O
problema é que Valter Hugo Mãe tem uma visão muito peculiar sobre os
fatos. Conceitos de fé e religião ganham outra dimensão diante de uma
literatura, no mímino, aplicada para o que existe de mais profundo. O
melhor de Valter Hugo Mãe é que ele deixa que algumas sombras,
sorrateiras, entrem pelas páginas de todos os seus livros. Boa parte de
sua prosa chega, desce com uma carga inexorável de poesia, a mais alta
poesia que pode haver. Não sei se há trabalho e retrabalho nessa
conduta, nessa construção imensa feita dos sonhos das palavras. Mais
importa o resultado. Valter Hugo é um grande inventor de neblinas, onde
mora o mistério. Valter, quando escreve, carrega o novo em suas mãos.
O
escritor português mexe em grandes vespeiros. A sua flecha vai de
encontro a Deus, não sem antes atravessar o espírito dos homens. O que
passa pelos olhos das carpideiras aparentemente alheias em seu trabalho
de lágrimas? Engana-se aquele que rapidamente, aquele que ingenuamente
adivinha que é a morte que norteia os acontecimentos. A finitude pode
ser ponto de partida.
Valter Hugo nos convoca para jogar. Existe
uma teia feita de nós e amarras. O escritor forja um elo entre
personagens e leitores. Os pobres personagens de O apocalipse dos
trabalhadores estão, viventes, apenas atravessando. Valter Hugo é um
escritor de palavras garridas. Só assim ele nos convence de que somos
feitos da mesma essência da luz. E esse tipo de literatura exige uma
conversão imediata. O verbo, o livro é um espaço propício para
transposições. É bom reencontrar. É ótimo agarrar num abraço tudo isso
que sempre foi nosso (essa espécie de esmola dos deuses). A vida é feita
de incidências.
“Deus: uma superfície de gelo ancorada no
riso.” Valter Hugo concorda, em partes, com ressalvas, com a poeta Hilda
Hilst. Os personagens deste belo livro são miseráveis de tudo, mas
existe – ainda – esperança quando há amor e comunhão, quando tudo
discorda e tem voz, mesmo que seja um grito, um gemido de dor diante de
um deserto renitente. Algumas crianças continuam vivas, algumas crianças
vingam perto dos livros de capa colorida. Não se sabe como, mas Valter
Hugo é dono de argumentos.
Contudo, o apocalipse. Porque
inventaram um sistema, uma engrenagem de erros; porque ainda não estamos
preparados para aquelas crianças de cima; porque ainda não há nenhuma
justiça; porque pesa no ar algo de precário, mesmo nos momentos de folga
e descanso.
Pequenas mortes Os personagem de O
apocalipse dos trabalhadores vivem desse jeito, prestes a cair, num
constante balé feito de desequilíbrios. Estes seres, de certa forma,
recusam-se a aceitar o seu destino de máquinas. O paraíso, a salvação de
cada um é forjada nas pequenos mortes do dia a dia. O apocalipse de
cada um paira, impávido, entre paradoxos. De um lado, a brutalidade, a
ignorância, o veneno posto do prato do marido, o trabalho braçal. Do
outro, a esperança, e a humilde transparência de almas e corações cheios
de incompletude.
É preciso, de alguma forma, de qualquer jeito,
corroer as estruturas da sociedade (a utopia, em toda hora), para que a
mesma desmorone. É preciso muito mais que armas e táticas de guerrilha.
Maria da Graça é assim: “para sobreviver à violência da situação,
concentrava-se no dinheiro que ganhava e julgava a vida como difícil e
para ela o difícil era suportável até um ponto de exagero assinalável.” E
é perigoso, e é muito triste não ter vocabulário suficiente para
explicar.
Valter Hugo nada mais faz que ampliar a voz de Maria
da Graça e Quitéria. Ele busca, com todo amor, captar, fixar, mesmo que
provisoriamente, enquanto durar o livro, a imagem destas mulheres que,
aos poucos, vai se apagando, até o sem sentido da invisibilidade. A
única palavra, a maior delas, é uma, e única: esperança.
Os
personagens de O apocalipse dos trabalhadores vivem abafados, numa “vida
periclitante, intermitente entre a esquerda ou a direita, para sempre
ou esgotada num segundo, doce ou amarga, com amor e profundo ódio.” O
coração dos personagens batem anômalos, numa distopia estranha. Todos
são indigentes, carentes de algo maior, que, no entanto, passa
despercebido. Cada um a seu modo, apenas intui um pequeno código que os
conecte a este algo suspenso, ainda longe em termos de conquista. Existe
uma rotina de sombras, de sustos. Os descuidados governam o destino dos
atentos. O apocalipse pode também ser isso, algo feito de pequenos
dissabores.
O APOCALIPSE DOS TRABALHADORES
• De Valter Hugo Mãe
• Editora Cosac Naify
• 192 páginas, R$ 39,90
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