sábado, 23 de março de 2013

Coração denso - Sérgio Rodrigo Reis

Obra poética de Lélia Coelho Frota ganha edição completa pela Bem-Te-Vi. Trabalho revela obra sofisticada, que chegou a receber elogios da poetisa Henriqueta Lisboa 


Sérgio Rodrigo Reis

Estado de Minas: 23/03/2013 


Quando se recorda do trabalho de Lélia Coelho Frota (1938-2010) como antropóloga, crítica e curadora de artes plásticas, e ainda à frente da defesa incondicional das manifestações da cultura popular, fica difícil imaginá-la de maneira tão intensa em outra área. Por tudo isso, a publicação de Poesia reunida 1956-2006 (Editora Bem-Te-Vi, 528 páginas), que acaba de chegar às livrarias, surpreende os que acompanharam a trajetória mais conhecida da pesquisadora carioca.

A poesia, na realidade, é uma das primeiras expressões de Lélia Coelho Frota. Aos 17 anos, depois de um período de imersão na linguagem, ela criou coragem e bateu às portas de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Na época, o autor trabalhava no Ministério da Educação e a recebeu bem, dando algumas sugestões. Outro que a ajudou nos primeiros ensaios como poeta foi o artista plástico Milton Dacosta (1915-1988). Depois de visitar uma exposição e se entusiasmar pelo trabalho do artista, a jovem poeta pediu a ele que ilustrasse seu primeiro livro. Em 1956, a obra foi lançada com as dicas de Drummond e os desenhos de Dacosta. Foi o início de Lélia na literatura.

Os prêmios Jabuti e o Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras vieram em 1978, pelo livro Menino deitado em alfa (Editora Quíron), reafirmando o talento e sensibilidade com as palavras. A literatura lhe rendeu amizades para a vida toda, com nomes importantes como Guimarães Rosa (1908-1967) e Cecília Meirelles (1901-1964) e admiração de outros como Ferreira Gullar, Henriqueta Lisboa (1901-1985) e Otto Lara Resende (1922-1992). O envolvimento com as letras levou Lélia Coelho Frota a criar a Bem-Te-Vi Produções Literárias. Inaugurada em 2001, desde então a editora tem como proposta o registro da cultura nacional e a preservação de nossa memória.

Poesia reunida 1956-2006 é uma bem cuidada homenagem à produção poética de Lélia. A começar pela capa da obra, toda vermelha que, antes mesmo de anunciar o título, traz impresso em azul o verso: “Eis um azul que tem o coração denso e oferto a outro azul mais denso: os vermelhos gotejam o que penso". A obra é uma demanda antiga de amigos próximos à pesquisadora que sempre insistiam com ela que reunisse seus versos num volume único. Por uma razão ou outra, ela sempre adiava a decisão. Uma pena ela não ter visto uma edição tão cuidadosa, homenagem carinhosa de amigos próximos.

Além do prefácio de Heloísa Buarque de Holanda, o livro traz um emocionado texto de Henriqueta Lisboa sobre a produção de Lélia. "A poesia dela é uma graça do céu e um fardo para os corações da Terra... Quando a habita a alegria, ela se deixa levar pelos ritmos rápidos em ‘modinhas ecoantes’ e adjetivos transbordantes, cantando, quase direi, dançando seus versos. Quando o sofrimento a visita ou apenas a dor de viver, de suportar o peso da mesma poesia, como árvore pendente de frutos, ela caminha passo a passo, recolhendo imagens de cascalho e ‘outro mordente’.” Palavras exatas, de poeta para poeta.

Popular e universal

Lélia Coelho Frota foi uma das mais importantes pesquisadoras da arte popular brasileira. Durante décadas, percorreu várias regiões do país em viagens nas quais foi ao encontro da arte mais genuína que surgia do gesto e das mãos de gente simples. Quanto mais pesquisava, mais encontrava exemplos de que, pelo menos em se tratando de arte e sensibilidade, não é necessário frequentar as mais disputadas academias de belas-artes.

Com este repertório de informações e análises elaborou um dos mais ricos registros do assunto: o Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro – século 20 (Editora Aeroplano, 2005). A obra é pioneira, com informações de 150 criadores populares nacionais. Como gestora pública, Lélia Coelho Frota sempre defendeu os artistas populares, como diretora do Instituto do Folclore da Funarte e do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, e como presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Uma das últimas ações da pesquisadora em defesa do patrimônio cultural do povo brasileiro ocorreu em Belo Horizonte. Ela participou do projeto Arte em dez tempos, do Sempre um Papo, ao lado da ceramista Maria Lira, de Araçuaí. Ali, bem à vontade, falou por mais de uma hora sobre sua paixão pela arte que vem do povo mais simples do país. E deixou ainda um relato emocionado sobre o que considera a genuína expressão popular, capaz de figurar nas principais galerias e museus do mundo. Quem esteve presente àquele encontro recebeu uma generosa aula de arte. Quem não viu tem a oportunidade de conhecer pelo site www.sempreumpapo.com.br. A palestra está no link “Série de DVDs”, de 2009.

Poesia reunida
1956-2006

De Lélia Coelho Frota
Editora Bem-Te-Vi, 528 páginas

Réquiem menor
Lélia Coelho Frota


O corpo se apresente
quase uma transparência
Saltitem tico-ticos
sobre o lisocabelo
e seus laços de fita.
E duas borboletas
finjam ser tênue pálpebra.
Epiderme? De trevo,
almíscar, porcelana.
Das mãos, em gesto lúdico
brote a interrogação:
viver foi distraído
mas em compensação.
O coração é relva
vrdília verdoenga
e raízes conspiram
levíssimas arengas.
Breve em breve as distâncias
descaso de eloquências
e a pausa, Mirliflores
maior, entre os amores.

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