Livro de Júnia Ferreira Furtado relaciona
história, geografia e diplomacia no Século das Luzes. Pesquisa desvela o
complicado jogo de interesses que havia por trás da elaboração dos
mapas
Francisco Eduardo Pinto
Estado de Minas: 09/03/2013
Oráculos da geografia iluminista é a mais recente publicação da
historiadora Júnia Ferreira Furtado, professora titular do Departamento
de História da UFMG. A obra surge com o selo da respeitada Editora da
UFMG. São imediatamente perceptíveis a beleza da edição, as ilustrações,
os curiosíssimos mapas. A pesquisa foi vencedora da edição 2011 do
Prêmio Odebrecht de Pesquisa Histórica.
O público leitor
certamente será o mais variado. Do livro poderão tirar grandes proveitos
os acadêmicos de história e de geografia, desde a graduação até os
pós-doutoramentos. Será também de muita utilidade para aqueles que
desejam candidatar-se à carreira diplomática brasileira. Enfim, será
leitura agradável para todos os apaixonados pela história, cujo universo
de leitores tem crescido consideravelmente. Isso pode ser percebido
pelo aumento das publicações que têm sido lançadas nessa área, que podem
ser vistas nos catálogos de diversas editoras, nas estantes das boas
livrarias e mesmo nas bancas de revistas.
O opulento livro, de
700 páginas, pode ser devorado em poucos dias. A viagem que ele
proporciona pelos seus 11 capítulos é agradável graças ao estilo de
escrita da autora. A pesquisa se ampara em rica e diversificada
documentação, pesquisada em arquivos brasileiros, portugueses,
franceses, holandeses, espanhóis, americanos e alemães, e a vasta
bibliografia – inclusive em língua estrangeira – denota a acurada
construção científica do texto. Transitar do campo da pesquisa acadêmica
para o mercado editorial mais amplo é tarefa de que poucos dão conta.
Júnia Furtado demonstra, com esse livro, sua capacidade de articular a
refinada produção historiográfica tornando-a acessível a um público
muito mais heterogêneo, ávido por novos conhecimentos, ansioso por
textos palatáveis, digamos mesmo, saborosos.
E como a autora dá
conta disso? Como todo bom escritor, produzindo um belo texto narrativo
que prende a atenção do leitor. Os personagens históricos da sua
narrativa são reais – é óbvio –, mas têm vida, pulsam. Percorrendo os
arquivos, a autora parece acordá-los de um sono secular. Através de suas
correspondências, mapas cartográficos, estudos, memórias e livros, seus
personagens muito nos esclarecem sobre o século 17. Falam do
Iluminismo, da Europa que viaja por todos os quadrantes do mundo em
busca de riquezas e conhecimentos. Falam da América – espanhola e
portuguesa – do comércio, da agricultura e, principalmente, das ricas
minas de prata e de ouro. Escancaram as intrigas diplomáticas tão
frequentes nas cortes europeias. São muitos aqueles que a autora acorda:
reis, nobres, embaixadores, militares, religiosos, letrados, sábios,
banqueiros e amantes. Também desperta gente da “arraia miúda”, como o
correio que vem de Paris para Madri trazendo a correspondência do
embaixador português dom Luís da Cunha. Entre os personagens, alguns
sonham e vivem no luxo. Outros – médicos e banqueiros judeus portugueses
– fogem da perseguição da Inquisição. Sábios franceses, vaidosos,
engalfinham-se nas disputas pelo patrocínio real de seus trabalhos
acadêmicos. Há ainda aqueles que se põem a se queixar de doenças e da
falta de dinheiro e choram o afastamento de suas amantes.
A
escrita do texto está centrada nos trabalhos do embaixador dom Luís da
Cunha e do cartógrafo francês Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville. O
primeiro, um savant que dedicou quatro décadas ao serviço diplomático
português durante o reinado de D. João V. Nesse período, o ouro e os
diamantes de Minas Gerais abarrotavam as frotas que partiam para Lisboa e
se espalhavam por toda a Europa. Dom Luís da Cunha serviu na
Inglaterra, Holanda e França. Em Paris, estreitou relações com
D’Anville, geógrafo do rei da França e membro da Academia Real das
Ciências de Paris. Os contatos entre os dois resultaram na construção de
um mapa da América meridional (Carte de l’Amérique méridionale). O mapa
focaliza as possessões portuguesas na América, ou seja, o Brasil.
A
construção de uma carta geográfica pode parecer aos incautos algo
simples e comum. Ledo engano. Era um processo lento e complexo devido,
sobretudo, à escassez de dados confiáveis para a configuração dos mapas.
Se ainda hoje, na era dos satélites e dos computadores, há regiões da
Amazônia não esquadrinhadas, o que pensar do século 18? Cuidadosamente, a
autora desvela um complicado e delicado pano de fundo que havia por
trás da elaboração dos mapas: os interesses comerciais, as estratégias
de espionagem, as disputas coloniais, os conflitos entre Portugal e
Espanha devido às indefinições das fronteiras na América meridional, bem
como as disputas diplomáticas com a França – até hoje dona do
território da Guiana – pelos direitos de navegação do Rio Amazonas.
Nesse
complicado contexto do século 18, a Carte de l’Amérique méridionale
assume a sua devida importância se pensarmos no significado do Brasil,
e, em particular, de Minas Gerais para o império português. Sem o Brasil
e suas riquezas Portugal seria insignificante. As potências europeias
cobiçavam as minas de ouro e as teriam tomado se lhes tivesse sido
possível. Basta lembrar as duas tentativas de invasão francesa do Rio de
Janeiro, tão logo as minas foram descobertas. O mapa, então, era
documento diplomático de extrema importância para assegurar a Portugal
as posses – e a expansão – de suas ricas colônias. A autora nos lembra
que o século 18 “foi, por excelência, o século da diplomacia”.
Diplomacia que fazia largo uso dos mapas em suas estratégias de
negociação na assinatura de tratados e deliberações nos congressos
internacionais.
Tordesilhas
O livro
torna-se obra fundamental para a superação da ideia muito cristalizada –
sobretudo entre intelectuais de pouco domínio da história do império
português – de um Portugal atrasado e mergulhado nas trevas ao longo do
século 18. Lança luzes sobre o áureo período joanino, sua riqueza,
fausto e ilustração. Demonstra a existência de uma rede de intelectuais
portugueses espalhados pelos mais importantes países europeus nos
diversos campos do saber. Uma rede que está presente também em Portugal e
seu império.
Percorrendo as páginas do livro e observando
atentamente os mapas e documentos escolhidos criteriosamente pela
autora, algumas questões vão tomando forma. As dúvidas a respeito do tão
famoso – e tão pouco entendido – Tratado de Tordesilhas começam a se
dissipar. Os complicados processos que definiram os atuais contornos
deste país gigante que é o Brasil começam a ficar mais claros. Mas há
muitas outras questões obscuras que o estudo desvela.
Depois da
leitura do novo livro de Júnia Furtado nunca mais miraremos um mapa –
seja moderno ou antigo – com o mesmo olhar. Desde crianças nos
acostumamos a ver o mapa do Brasil estampado em todos os cantos
(escolas, repartições públicas, livros etc.). Letrados e iletrados olham
para o mapa sem a menor noção do quanto foi difícil e penoso para que
ele chegasse à configuração atual. Milhões de brasileiros não têm sequer
a ideia do que o mapa realmente representa.
Trata-se de um livro
denso, erudito e, ao mesmo tempo, acessível à comunidade não acadêmica.
Devido à sua profundidade de análise e esmerada escrita, certamente
terá nova edição e tradução para outros idiomas.
Da autora também
é imperdível a leitura de Chica da Silva e o contratador dos diamantes e
Homens de negócios. Ambas as obras mergulham no universo colonial do
século 18. O primeiro desmitifica a tão enigmática figura de Chica da
Silva e o segundo analisa as relações de poder no mundo comercial do
império português.
Então, não percamos mais tempo: os Oráculos nos convidam para uma boa leitura.
*
Francisco Eduardo Pinto é doutor em história e pesquisador do Núcleo de
História Rural da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Oráculos da geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil
De Júnia Ferreira Furtado
Editora UFMG, 708 páginas, R$ 120
Nenhum comentário:
Postar um comentário