sábado, 9 de março de 2013

Fé e resistência -Angelo Oswaldo

Santos negros sempre atraíram a devoção dos brasileiros e dos africanos que vieram para o país. Efigênia, Benedito e Elesbão estão representados em importantes igrejas de Minas Gerais 


Angelo Oswaldo

Estado de Minas: 09/03/2013 

Os africanos que vieram para Minas Gerais, desde o início do século 18, logo elegeram santos negros como protetores privilegiados. Efigênia, Elesbão, Benedito e Antônio de Noto ou de Caltagirone ganharam templos ou altares nas capelas dedicadas à Virgem do Rosário, padroeira dos africanos escravizados, e figuraram com realce nas celebrações, tradicionalmente realizadas no mês de outubro, em honra da Senhora que carrega o Menino Jesus e tem à mão direita o rosário de contas. São vistos em destaque nas igrejas de Santa Efigênia e do Rosário de Ouro Preto, entre muitos outros templos coloniais do Brasil.

As quatro imagens pertencentes ao Rosário ouro-pretano fizeram parte da magnífica exposição do barroco brasileiro, no Grand Palais, em Paris, na virada de 1999 para o ano 2000, tendo provocado imensa curiosidade no público. O ineditismo da iconografia fora da Península Ibérica e da cultura luso-hispânica atraiu o público parisiense.

Benedito de Palermo e Antônio de Noto foram africanos que, cruzando o Mediterrâneo, se fizeram monges em monastérios das respectivas cidades do Sul da Itália e alcançaram a santidade pela vida consagrada à fé católica. São Benedito popularizou-se de tal forma no Brasil que sua solenidade, em 4 de abril (morreu neste dia, em 1589), reúne milhares de devotos na basílica nacional de Aparecida. No Rio de Janeiro, na região da Penha, o santuário de Santo Antônio de Noto, ou Caltagirone, ou Categeró, como dizem os cariocas, recebe numerosos romeiros, em 14 de março e também em 13 de junho, dia de Antônio de Lisboa, ou de Pádua, o grande taumaturgo franciscano. Antônio de Noto morreu em 14 de março de 1549.

Santa Efigênia, ou Ifigênia, teria sido uma princesa núbia, segundo a tradição, batizada por São Mateus, apóstolo que levou o cristianismo ao Nordeste da África. Ele semeou a fé entre os etíopes, dando origem à Igreja copta na Abissínia. Efigênia estaria assim entre os primeiros cristãos africanos, e defendeu a fé copta por sobre todos os riscos. Sua iconografia a apresenta em vestes de monja, levando à mão esquerda uma pequena igreja de prata ou madeira policromada, com as chamas de um grande incêndio do qual a santa protege a religião. A palma dos mártires aparece na mão direita.

Em São Paulo, existe uma igreja dedicada a Efigênia, desde a colônia. Foi ampliada no começo do século 20, na região em que se acha o Viaduto Santa Efigênia, pelo qual milhares de pessoas diariamente cruzam o vale do Anhangabaú. No Centro do Rio de Janeiro, na Rua da Alfândega, uma igreja levantada no início do século 18 tem como oragos Santo Elesbão e Santa Efigênia, erigida por irmandades de negros que veneravam os dois etíopes. Em Belo Horizonte, na Avenida Brasil, a Igreja de Santa Efigênia vem dos primórdios da capital e dá nome ao bairro. É a padroeira dos militares do quartel da Praça Floriano Peixoto.

Na ladeira do Pelourinho, a primeira capital do Brasil conserva uma portentosa imagem de Santo Elesbão, sem a figura do mouro, em vestes de rei, na Igreja do Rosário dos Pretos. O historiador Miguel Gastão da Cunha, que foi a Salvador fotografá-la para seu estudo sobre a Etiópia quinhentista, lembra que, entre 1540 e 1545, época da fundação da capital da Bahia por Tomé de Souza, soldados portugueses sob o comando de Cristóvão da Gama, filho do grande Vasco da Gama, salvaram o reino dos etíopes coptas de uma terrível invasão otomana.

Igreja imponente em nome da Senhora do Rosário e Santa Efigênia se ergueu no Alto da Cruz, em Ouro Preto, à qual se chega por grande escadaria de pedra. Diz a tradição que Chico Rei foi o mecenas de sua construção. Africano que comprou a alforria da família e de si próprio, ao economizar ouro em pó na faina do garimpo, ele o recolhia nos cabelos frisados e nas unhas. Chegou a ter sua própria mina, que se visita junto à ponte do Palácio Velho da Encardideira. O historiador norte-americano Donald Ramos, após longas investigações em arquivos mineiros, considera Chico Rei um dos mais atuantes moradores de Vila Rica na primeira metade do século do ouro.

Santa Efigênia de Ouro Preto é hoje sede paroquial e conserva altares barrocos e pinturas de notável qualidade, nos forros da capela-mor e da nova, faz pouco restaurados. Francisco Xavier de Brito entalhou o corpo do retábulo principal. O guia de turismo e pesquisador Marcelo Hipólito chamou a atenção para diversas talhas que cifram signos africanos, o que ressalta o sincretismo religioso, já que os negros continuaram a cultuar, no Brasil, os deuses de seu panteão por intermédio dos santos católicos. Há grandes festas no dia de Santa Efigênia, 21 de setembro.

Abissínia


Santo Elesbão é o menos conhecido e vai aos poucos caindo em esquecimento. Obra recentemente publicada em Lisboa parece trazer alguma luz sobre sua origem. Páginas secretas da história de Portugal, de autoria de Rainer Dachnhardt, português de antiga ascendência alemã, levanta as relações estreitas mantidas pelos lusitanos com a Etiópia, ou Abissínia, desde o século 5.

O Infante dom Henrique, em seu centro náutico de Sagres, pedia aos navegadores que lhe trouxessem notícias de Preste João. O presbítero (padre) João era uma legenda que atravessou os tempos, referindo-se a um dos primeiros sacerdotes cristãos na África. Os portugueses acreditavam na existência do Reino do Preste João, no Oriente, imaginaram sua localização na Índia e o identificaram como sendo a Abissínia, por eles batizada de Império do Presbítero João das Índias. Tornou-se assim um dever da fé e da monarquia lusitanas amparar o reino cristão da África na resistência abeximà tenacidade dos mouros.

Com tropas, armas e bens diversificados, Portugal apoiou continuadamente as estratégias da Abissínia contra os exércitos muçulmanos que se empenhavam em conquistar o baluarte cristão do Mar Vermelho. Dom Manuel I chegou a enviar livros, uma oficina tipográfica e mestres impressores ao negus (imperador) da Abissínia, ao tempo em que suas caravelas descobriam o litoral brasileiro. Dom João III mandou padres jesuítas e professores de língua portuguesa à corte dos abexins, ao mesmo tempo em que mandara José de Anchieta e Manuel da Nóbrega para o Brasil.

O humanista Damião de Góis (1502-1574), historiador, homem de Estado e diplomata, próximo de dom João III, uma das mais brilhantes personalidades renascentistas de Portugal, defendia os abissínios e o velho cristianismo da Etiópia. Procurou proteger e valorizar o papel do bispo abexim Zaga Zabo, enviado a Lisboa pelo negus para negociações com dom João III e aproximação com o papa, com ajuda do soberano português. Dentro de uma visão ecumênica, Damião de Góis, que havia encontrado Lutero, Melanchton e Erasmo, entendia que a religião da Abissínia devia ser reconhecida e respeitada por Roma.

Estava em jogo a hegemonia portuguesa no Oriente, instaurada pela viagem de Vasco da Gama, ameaçada e esvaziada no transcorrer do século 16 pelas peripécias que culminaram no domínio espanhol (1580-1640). Sucessor de dom João III, seu filho dom Sebastião desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir. O tio do jovem rei, cardeal dom Henrique, pouco permaneceu no trono. Cardeal-inquisidor, assumiu posições radicais que o afastaram dos abexins. Após sua morte, Felipe II da Espanha ficou com a coroa e morou dois anos em Lisboa para fixar seu poder. Os interesses portugueses perduraram até o século 18, quando a Abissínia se isolou dos contatos com o exterior e Lisboa se concentrou no eldorado brasileiro. O intercâmbio acentuado no século 16 engendrou o diálogo que terá incluído Efigênia e Elesbão no devocionário lusitano, antes da ocupação do Brasil e do ciclo do ouro nas Minas Gerais.

Elesbão de Axum, cuja festa se celebra em 27 de outubro, foi rei na Abissínia, ou Etiópia, no século 6 e defendeu o cristianismo. Sua iconografia lhe enfatiza essa condição maior, com a coroa e cetro e o hábito de frade, pisando a cabeça de um infiel mouro. Não fosse protegida pelo ostracismo, causaria mais polêmica do que o erudito comentário de Bento XVI sobre o imperador bizantino Manuel II Paleólogo, o qual havia condenado, numa discussão com um sábio persa, o uso da violência em matéria de religião. Tomado como guardião da fé, o rei abissínio foi visto como um negro que prestou serviço singular ao cristianismo, derrotou os pagãos e mereceu a dignidade dos altares.

Por meio de Santo Elesbão e Santa Efigênia, bem como de São Benedito e Santo Antônio de Noto, os africanos buscaram demonstrar ao Brasil colonial que negros também eram cristãos, mártires e santos, pelo que a escravidão, mais do que um crime hediondo contra a humanidade, era por certo irremissível pecado mortal perante a lei de Deus.

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