Hoje, excepcionalmente
De tudo o que escrevi, só duas frases prestavam -e não eram minhas, mas de Fernando Pessoa
PEÇO PERDÃO ao caro leitor por estas mal traçadas linhas. Sei que a úbere Flor do Lácio já produziu pétalas mais cheirosas do que as que ora ofereço a vossas exigentes narinas. Em minha defesa, digo que não foram a preguiça ou a inépcia as culpadas pelo crônico desmantelo, muito pelo contrário: foi a ambição. O presente texto é fruto de uma experiência pioneira -e não existe pioneirismo sem riscos, como bem sabem os descobridores e, principalmente, os que nada descobriram; os grandes heróis anônimos cujos nomes, destinados aos livros de história, acabaram no fundo dos oceanos ou no bico dos urubus.
Qual era minha ambição? Escrever uma crônica com começo, meio e fim -e, se possível, graça-, instalado na saraiêvica balbúrdia de uma casa em reforma. Tenho certeza de que Marco Polo foi à Conchinchina, Neil Armstrong pisou na lua e Takeru Kobayashi comeu 50 hot dogs em 12 minutos sem sofrerem tanto quanto eu.
O texto que tentei escrever seria sobre a saudade. Teria frases de efeito, tipo "toda saudade é um lembrete da morte" e "no fim, a ausência é a única presença", mas a única presença detectável nas últimas 48 horas, dentro e fora do meu cérebro, é a dos pedreiros, executando sua ininterrupta sinfonia para Makita e marreta.
Que sinfonia! A marreta faz o chão tremer e o laptop sambar no meu colo, como se Deus, ouvindo um cha-cha-cha -e sem nenhuma noção de ritmo-, batucasse na laje. Já o som da Makita penetrando o concreto é... Como definir? Sei exatamente como, depois de dois dias ouvindo-o: é como o urro de uma elefanta fanha sob efeito de anfetaminas tentando imitar uma gata no cio. (A gata não é fanha, só a elefanta: há aí uma diferença sutil, porém fundamental.)
De tudo o que escrevi entre as nove da manhã de segunda e as seis da tarde de terça, só duas frases prestavam -e não eram minhas, mas de Fernando Pessoa: "Oh mar salgado, quanto de teu sal/ São lágrimas de Portugal!". Foi a grandiloquência desses versos que me levou a Marco Polo, a Neil Armstrong, ao fundo dos oceanos. (Os hot dogs de Takeru vieram de um documentário e os urubus, imagino, foram atraídos pelo cheiro de carniça que já emanava de minhas primeiras palavras.)
Agora, enquanto o deadline se aproxima, a casa treme e a elefanta urra, em vez de me desesperar, arranjo subterfúgios. Por exemplo: ver no dicionário o feminino de elefante. Lembro-me de que era uma palavra curta e bonita. Aí está: aliá. Monto a aliá e sigo em minha marcha procrastinatória até o colegial, onde estudei com uma menina chamada Eloá. De elefanta, não tinha nada. Era magra, tristemente linda, vestia-se de preto e tinha sobrancelhas muito delicadas, tão delicadas que eu não sei como resistem, há mais de 15 segundos, às marretadas que chacoalham meus neurônios.
Volto da divagação com o desejo algo corrupto de dizer que sinto saudades de Eloá, resgatando à crônica algo de seu tema original e fechando-a com um laço de lirismo, mas estaria mentindo. Mal conheci Eloá. Quem conheço bem é a aliá, a elefanta, a "elefanha" anfetamínica a urrar em meus ouvidos sua imitação de gata no cio.
Perdão, caro leitor: hoje, excepcionalmente, esta coluna não será publicada.
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