João Paulo
Estado de Minas: 29/04/2013
Vitalidade de seobra setentão Caetano, que, elegante, rebolou, ensaiou passos de funk e até se deitou no chão |
O disco que completa a trilogia ao lado da banda – depois de Cê (2006) e Zii e zie (2009) – chega puxado pela celebração de A bossa nova é foda, canção que abre o show, e explicita os recursos musicais da parceria. O cantor emenda com Lindeza, do disco Circuladô, de 1991, como se propusesse um diálogo das duas vertentes bossa-novistas: a força irruptora masculina (pouco falada) e a suavidade (feminina) que chega operando um recuo no tempo. Mas, é importante notar que, mesmo quando vai à memória, ela é sempre marcada pela musicalidade contemporânea. O novo e a tradição se comunicam no tempo. Fechando o momento, a sensual Quando o galo cantou, uma espécie de síntese em torno da bossa de ontem e de hoje, inclusive em relação à letra da nova canção.
O disco, assim como o show, é obra de banda, com sonoridade própria, em que o power trio, com suas experimentações de timbres e ritmos, em momento algum se separa da condução dada pela canção. A voz e o violão de Caetano estão presentes o tempo todo. Com ataque sempre reto, a banda deixa de lado um tentador minimalismo para apostar no efeito da concisão, que sempre evoca mais do que exibe. Essa inspiração chega também ao cenário de Hélio Eichbauer, com um fundo com figuras geométricas e telas em homenagem ao russo Kazimir Malevich distribuídas pelo palco. A voz de Caetano deixa a linhagem joão-gilbertiana da doçura para buscar outros recursos, alterações de tonalidades, falsetes e mudanças de registro. O cantor está ainda melhor. Caetano é foda.
O álbum tem canções tristes e, mesmo nas mais movimentadas, não está distante a melancolia. A maturidade se reconhece sem muitas concessões ao consolo da sabedoria. É um momento masculino e de reconhecimento do tempo que passa. Ainda assim, é notável a capacidade de renovação e invenção de Caetano Veloso e seus músicos, num show em que cada música carrega uma dose evidente de trabalho prévio. O repertório segue com Abraçaço, com direito a coreografia dos músicos atrás de Caetano, movimentando os braços como um polvo cheio de afeto, e da energética Parabéns, dedicada aos aniversariantes da noite, que ganham votos de uma alegria excelsa, traduzida modernamente por “tudo megabom, gigabom, terabom”. Das canções do disco ficou de fora do show apenas Vinco.
De Abraçaço estão ainda no roteiro Estou triste (arranjo belíssimo que explora as possibilidades líricas da guitarra), O império da lei (carimbó engajado, um dos pontos altos do show, com forte pegada política), Quero ser justo, Gayana (de Rogério Duarte), Funk melódico (que usa elementos literários e musicais para expor uma dissonância cultural, irritando e consolando o ouvinte com seus excessos e metalinguagem) e O comunista, homenagem a Carlos Marighella. A canção dedicada ao “mulato baiano” ganha um jogo de luz expressivo, em vermelho quente, destacando o tom narrativo da canção que traz a experiência e as reflexões de Caetano sobre a política do período da ditadura (“os milicos”) e a ausência de sonhos dos nossos dias (“vida sem utopia não entendo que exista”).
Como puxado pelo tema, o cantor recupera a partir daí canções setentistas, com destaque para Triste Bahia, do disco Transa, de 1972, época de seu exílio (que também é cantada em O comunista: “O mulato morreu e eu estava no exílio”). Grande momento do show, a guitarra de Pedro Sá recria a sonoridade afro da gravação original, em diálogo com a bateria e a percussão. Ainda dos anos 1970, Caetano recupera Você não entende nada, De noite na cama, Escapulário e Alguém cantando, esta uma homenagem à irmã Nicinha. Dona Canô também é lembrada com emoção em Reconvexo e Mãe, canção gravada por Gal em Caras e bocas e que foi reposta em cena no novo show da cantora, Recanto, que tem a marca de Caetano.
Da fase Cê integram o show as canções Odeio, Homem e Outro. Embora o formato de concerto e as características do teatro permitam melhor fruição das minúcias dos arranjos e dos versos entoados ao vivo, o Palácio das Artes parece pregar todo mundo nas cadeiras. O público custa a reagir. Mesmo com a senha dada de que as manifestações de euforia seriam bem-vindas, foi preciso chegar perto do fim do show e de canções mais diretas como Eclipse oculto, do disco Uns, de 1983, para que as pessoas se levantassem e chacoalhassem os ossos. Com Luz de Tieta a festa ficou completa, até que Caetano deixasse no ar, com a canção Outro, um apelo à realidade: “Olhe para lá, que eu fui-me embora”.
Se há uma novidade no excelente Abraçaço é a conquista de um degrau a mais na sensibilidade do ouvinte. Caetano, que já foi experimental em vários momentos de sua trajetória, usa tudo que deu ao público para cobrar dele um entendimento mais amplo da arte e da vida, questões que o continuam movendo. Não há facilidades no disco, mas nem por isso o estranhamento da primeira audição afasta o público. Ouvir o velho Caetano no novo Caetano é uma operação possível porque ele nos preparou para isso. Quando ele canta no show “quero que você venha comigo” não está fazendo apenas um convite, mas confessando sua vontade de companhia. Sorte nossa.
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