Valor Econômico - 29/04/2013
Como podem a educação e a
cultura conduzir-nos de uma democracia de consumidores, na qual um dos
grandes critérios para medir a inclusão social é o aumento nas vendas a
crédito - para uma democracia em que as pessoas estejam menos presas ao
consumo, com o que este tem de arriscado e perigoso: pois é efêmero e, o
que é pior, torna o voto quase consequência de certas politicas
governamentais? Entre elas, a irrigação de dinheiro na praça, a venda a
preço baixo de mercadorias de má qualidade e, sobretudo, o fato ou
suposição de que ganha votos quem esparrama o crédito pelo comércio. A
confiança no governo, fator crucial para ganhar eleições, parece oscilar
em função do crédito na praça.
Esta situação faz pairarem duas
restrições à qualidade de nossa democracia. A primeira está no tipo de
eleitor e cidadão que ela forma: seus valores principais estão no bolso.
Não são valores políticos. São valores do consumo. É verdade que
sustentei, anos atrás, em meu artigo "A inveja do tênis", que muitas
vezes os pobres sentem maior desejo por bens de consumo, como um tênis
de grife, do que pelas necessidades básicas da vida social: saúde,
educação, trabalho, moradia e segurança. O consumo é forte na política
atual.
A segunda restrição é que o consumo está em boa medida nas
mãos do governo. Ele pode, abrindo e fechando as torneiras, influir nos
resultados das eleições. A condição é marcar o ano da eleição
presidencial pela expansão do crédito ao consumidor. Obviamente, nem do
lado do eleitor, nem do governo, essa situação é positiva para a
democracia.
O que sugiro aqui é uma crítica que lembra a dos
filósofos, ao longo da história, às ilusões do consumo. Podemos viver
num mundo das aparências, aturdidos por uma sucessão de prazeres - já
que a natureza destes é durarem pouco, precisando ser trocados o tempo
todo. Nenhuma sociedade conseguiu, antes da nossa, fornecer tantos
prazeres a tantas pessoas. Mas os filósofos criticam isso. Dizem que
assim se perde de vista a felicidade que, nas palavras de Rousseau, não é
uma sucessão de prazeres, que sempre terminam em saciedade ou
frustração, mas "um estado simples e permanente, no qual a alma se basta
a si mesma". Pois é. Nada mais longe de nós, exceto daqueles, bem
minoritários, que mesmo sendo ricos se orientam para o budismo ou outra
sabedoria, geralmente oriental. Porque o grande problema da aposta nos
prazeres (dizem os filósofos) ou no consumo (supomos hoje) é o risco, o
"day after", a ressaca - e ainda a impossibilidade do autogoverno. Quem é
joguete do seu desejo não se autogoverna. Quem é refém de seus prazeres
não vive em democracia.
Como mudar isso? Penso que há três
ingredientes fortes que podem mudar a orientação das coisas. Começo pelo
esporte, mas entendendo-o, a exemplo do movimento MOVE (iniciativa
internacional que no Brasil foi encampada pelo SESC de São Paulo), não
como esporte competitivo, como projeto de investir milhões em atletas de
escol a fim de obter medalhas olímpicas, em sua, não como gerador de
espetáculo - mas como promoção da atividade física do maior número
possível de pessoas. Basta um dado: por volta de 2005, nosso Ministério
das Cidades queria baixar o porcentual de pessoas que vão a pé para o
trabalho (por não terem dinheiro para a passagem), enquanto o
Departamento de Saúde norte-americano pretendia aumentar esse porcentual
(para aumentar o exercício físico dos cidadãos). Há mérito nas duas
iniciativas, mas o futuro é da segunda.
Depois, a cultura.
Cultura e educação são, se formos à etimologia, duas formas de indicar
como o homem se separa da animalidade. Cultura se opõe a natureza.
Educação significa sair de um lugar para outro, melhorando. Bebês, que
são quase animais, se veem educados para se tornarem humanos. A educação
tem assim um currículo, uma regularidade, que a faz ocupar mais de dez
anos da vida das pessoas. Ela é absolutamente necessária. Agora, ninguém
espera que a cultura tenha um currículo, uma lista de obras
imprescindível, sequências necessárias a cumprir, exames a prestar. Há
um aspecto obrigatório na educação e um gratuito na cultura, que colocam
esta última do lado do prazer, do prazer bem usado.
Assim, dos
três fatores que podem reduzir o canto de sereia do consumismo, um
precisa ter um roteiro obrigatório e longo, que é a educação, enquanto
os outros dois, cultura e atividade física, só funcionam se prodigarem
satisfação. Precisamos dos três. Eles constituem fortes exemplos de que o
dinheiro não pode tudo, até porque muito esporte e muita cultura são
gratuitos, mas mais que isso: o que se ganha com eles não se perde. Esta
é a enorme diferença com o consumo. O que se consome, como diz a
palavra, está consumido, queimado, liquidado. Já a educação fica, assim
como a cultura e a atividade física se incorporam ao sujeito. Posso
esquecer todos os filmes que vi, os jogos de que participei, mas minha
mente e meu corpo se enriqueceram graças a eles.
Será então o
fortalecimento destas três áreas um bom antídoto ao avanço, que até
parece irresistível, dos excessos nos games, nas unhas esmaltadas das
moças em ascensão social, da ideia de que "my pussy é meu poder", que
reduz o poder a um de seus componentes básicos, primitivos, o de que
tudo gravita em torno de quem controla o acesso ao prazer sexual, o
homem pela opressão, a mulher pela sedução? Nenhum desses prazeres é mau
em si. A questão, e lembro Foucault, está no uso dos prazeres. Eles
precisam ter seu devido lugar. E para o terem é preciso fortalecer essas
três áreas que mencionei: para além do prazer, a felicidade.
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