segunda-feira, 29 de abril de 2013

O assunto é Aborto - Tendências/Debates

folha de são paulo

OLÍMPIO BARBOSA DE MORAES FILHO
A saúde pública espera por mudança
O tema do aborto deve ser analisado sob o prisma da autonomia individual e da realidade trágica que leva mulheres a arriscarem a vida
Poucos se dão conta de que uma tragédia assola o país, sem alardes no noticiário. No Brasil, por ano, de 250 a 300 mulheres morrem em decorrência de abortos clandestinos.
A maioria delas é jovem, negra, analfabeta, tem baixa escolaridade e nível socioeconômico. Por ser crime, a conta é incerta, mas o impacto da perda dessas vidas desestrutura famílias e enterra sonhos.
As estimativas falam em cerca de 1 milhão de abortos realizados na ilegalidade anualmente no país. Desse total, ao menos um quarto gera complicações que levam a internações para curetagens pós-abortamentos na rede pública. Muitas mulheres ficarão estéreis ou terão a saúde comprometida por toda a vida.
Isso ocorre à sombra do nosso anacrônico Código Penal (de 1940), cujos estreitos limites excludentes de ilicitude do aborto não dialogam com os compromissos humanísticos inerentes à responsabilidade social e aos tratados internacionais subscritos pelo governo brasileiro.
Há pouco, o Conselho Federal de Medicina --em resposta a solicitação da comissão especial do Senado criada para cuidar da reforma desse código-- decidiu expressar ser favorável à ampliação do leque de situações em que há exclusão de ilicitude.
Ora, essa decisão não transforma a entidade em defensora do aborto ou de sua descriminalização. O que está em discussão é o aumento do número de "causas excludentes de ilicitude". Ou seja, em determinadas situações previstas em lei, a interrupção da gestação não configurará crime. Atos praticados fora desses parâmetros serão punidos.
A análise de tema tão complexo não pode ser tratada de forma maniqueísta, de reserva teológica ou de fé dogmática. Espera-se o equilíbrio e a isenção que permitam enxergar no aborto a relevância de um grave quadro de saúde pública.
Nesse debate, o tema do aborto deve ser analisado sob o prisma da autonomia individual e da realidade trágica que leva mulheres a arriscarem a vida. Por medo de serem punidas pela Justiça, realizam procedimentos sem segurança.
A prática do aborto clandestino prevalece em países onde as leis sobre o tema são mais restritivas.
Em 97 países, que concentram cerca de 70% da população mundial, há regras que permitem a interrupção da gestação. Em outros 93, a prática é proibida ou só é permitida em situações especiais, como deformações do feto, violações ou risco de vida para a mãe. A Organização Mundial da Saúde calcula a realização de 46 a 55 milhões de procedimentos anuais em todo o mundo. Cerca de 80% deles em países em desenvolvimento.
Estudos indicam que, em países onde houve reformas legais com ampliação do número de situações de excludência de ilicitude, caiu de forma significativa a morbimortalidade materna. Nesses locais, com o aumento da procura das mulheres por informação em saúde sexual e reprodutiva e por métodos contraceptivos, reduziram-se as situações de gestação indesejada e, consequentemente, de abortos.
Não podemos prever de forma cartesiana que isso se reproduzirá no Brasil, apesar dos indícios científicos dessa possibilidade.
O que nos parece relevante é discutir o tema com todos os setores da sociedade, para tratá-lo sem subterfúgios. É preciso encontrar o melhor caminho para impedir que a transformação do direito à vida assuma o caráter de dever de sofrimento para milhares de mulheres.
Num país marcado pela desigualdade, apenas o exercício da razão, da compaixão e da solidariedade poderá evitar novas tragédias ou a manutenção dos dramas silenciosos.


    LUIZ E. GARCEZ LEME
    O ASSUNTO É ABORTO
    A revolução hipocrática
    Em 25 séculos, o juramento hipocrático deixou de ser patrimônio de médicos ou pacientes para tornar-se patrimônio comum de todos
    Para todos aqueles que têm interesse por ética de pesquisa e bioética, alguns temas são familiares. A questão do aborto é típica.
    A favor do aborto (ou de seus sinônimos adocicados) esgrime-se com o pacote de argumentos dos direitos de autonomia da mulher, sem se conceder direitos ao embrião; da imaginada impessoalidade do embrião, sem explicar o que seriam então essas curiosas células que se desenvolvem e estruturam com um genoma distinto do da mãe; da conveniência social e de saúde pública.
    Contra o aborto esgrime-se essencialmente com os direitos da pessoa humana desde a concepção; da superioridade do direito à vida sobre a conveniência social ou pessoal, que impede, por exemplo, que se assassine um vizinho incômodo.
    Existem também os dados oficiais de mortalidade materna do Ministério da Saúde (Datasus), que destoam de muitos dados usados como bandeiras a favor do aborto.
    A questão não é atual. Entre gregos e romanos a prática do aborto, do infanticídio, do suicídio e de outras formas de intervenção na vida era conhecida e até comum. O mesmo pode-se dizer do ponto de vista social sobre a pedofilia, a sujeição da mulher ou a escravidão.
    Em meio a essa realidade, vários séculos antes de Cristo, alguns já anteviam que não era este o caminho para o verdadeiro cuidado do ser humano. Tal percepção levou os discípulos de Hipócrates de Cós a elaborarem uma série de normas que confrontava a prática vigente colocando o ser humano em primeiro lugar.
    Durante quase 2.500 anos os médicos têm proclamado, desde sua formação, que o cumprimento dos princípios hipocráticos é essencial não só ao exercício profissional mas à sua própria existência.
    Na verdade os princípios do assim chamado juramento hipocrático nesses 25 séculos deixaram de ser patrimônio de médicos ou pacientes para tornarem-se patrimônio comum de todos. São bases de percepção da dignidade humana.
    O texto pode ser dividido em dois grupos de compromissos: os referentes à vida biológica e os referentes à vida biográfica, ambos componentes humanos indispensáveis.
    Do ponto de vista biológico, o compromisso veta a agressão à vida pela má prática, o aborto ou o suicídio assistido. Do biográfico, exige o direito à intimidade e ao sigilo e veta a utilização da atividade médica para dano ou sedução.
    O que impressiona é que o juramento deixa explícito que esses direitos e deveres são válidos para homens ou mulheres, livres ou escravos. Revolucionário para a época hipocrática e, infelizmente, parece que também para a nossa.
    A controversa posição da atual diretoria do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre a possibilidade de aborto até o terceiro mês de vida da criança, tal como amplamente veiculada pelos meios de comunicação, não parece ter em conta o compromisso sobre o qual todos os médicos, velhos ou novos, algum dia juramos.
    Não me parece que o CFM tenha, ao lado de outras atribuições legítimas, autoridade suficiente para anular o juramento hipocrático.
    A proteção do mais frágil baseada em direitos que subsistem em qualquer situação está na essência radical do agir médico.
    A comunidade, mesmo a mais simples, sabe disso e cobra com acerto esse direito quando se sente ameaçada. Qualquer médico com um mínimo de experiência já ouviu em algum pronto-socorro do passado de um familiar desesperado: "Doutor, os senhores têm que fazer alguma coisa... Os senhores juraram!". É verdade: nós juramos!

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