Prisão de cambista que empregava 30 pessoas e tinha até máquina de cartão
ilustra como atividade se torna sofisticada e ganha características de quadrilha.
PM calcula que 5% dos ingressos de jogos e shows caem nas mãos de atravessadores
Mateus Parreiras
Estado de Minas: 29/04/2013
A
venda de ingressos para espetáculos e jogos de futebol no câmbio negro,
por meio dos chamados cambistas, ocorre sob uma camuflagem de “serviço”
para dar comodidade aos clientes, mas a expansão e a sofisticação dessa
atividade chegaram a tal ponto que envolve até falsificação de
documentos, corrupção de funcionários, furto de bilhetes e formação de
quadrilha. A reportagem do Estado de Minas percorreu portas de estádios,
casas de shows e ginásios para mostrar como funciona o esquema de
grupos que vivem de desviar entradas das bilheterias e recrutar gente
para pernoitar em filas e comprar tíquetes e que, segundo cálculos da
Polícia Militar, chegam a reter até 5% dos ingressos mais desejados de
Belo Horizonte. Ou seja, de cada 20 entradas emitidas pelas organizações
de jogos e espetáculos, uma vai parar nas mãos dos cambistas – às vezes
antes das vendas oficiais – e sairá muito mais cara para o consumidor.
Os
métodos dos atravessadores evoluíram e não são mais apenas uma
combinação de pôr muita gente numa fila para comprar mais ingressos do
que o permitido e depois revendê-los. “Meu esquema é o de colocar gente
na fila, mas conheço quem consiga até 200 ingressos de dentro da
bilheteria. Sai tudo junto, no bloco, antes de começar a venda oficial”,
revela um cambista que atua em BH há cinco anos. “O cara é tão forte e
tem tantos clientes que já aconteceu de ele comprar os meus ingressos
quando já tinha vendido todas as entradas dele”, completa.
A
audácia dos cambistas desafia a polícia. Na última quarta-feira, por
exemplo, a reportagem foi abordada por dois cambistas que vendiam
ingressos do jogo Brasil e Chile, no Mineirão, dentro da área que seria
restrita a quem já tivesse entradas em mãos. O ponto que escolheram é
logo embaixo da esplanada que liga o Mineirão ao Mineirinho, um local
escuro, onde a polícia não conseguia vê-los. “Ingresso, ingresso,
ingresso”, gritavam para atrair fregueses. “Quantos você quer? Vendo por
R$ 180”, disse o homem. Com a recusa, fez uma última oferta: “Faço por
R$ 100 e ainda te levo na bilheteria para você ver que não é falso”,
acrescentou. Oficialmente, o ingresso oferecido pelo cambista custava
entre R$ 50 e R$ 80.
Outro exemplo de como os grupos de
cambistas são cada vez mais sofisticados e semelhantes aos de
organizações criminosas foi revelado com a prisão de um dos mais
conhecidos negociadores de ingressos de Minas, Julio César dos Santos,
apelidado de “Negro Gato”, de 31 anos. Ele foi detido no dia 21 nos
arredores do Mineirão, durante o jogo Atlético e Villa Nova. Segundo a
polícia, o esquema de Negro Gato era articulado e envolvia cerca de 30
pessoas que trabalhavam exclusivamente para revender ingressos mais
caros. Foi a 72ª vez que a polícia prendeu o cambista, que tinha como
lema não vender ingressos, mas “comodidade”, aliviando seus clientes de
filas de bilheterias. De acordo com o tenente André Oliveira, do 34º
Batalhão da Polícia Militar, os próprios policiais ficaram surpresos com
a complexidade das ações do cambista ao entrar na sua casa, que fica no
Bairro Luxemburgo, na Região Centro-Sul de BH.
Na casa de Negro
Gato havia maços de formulários de frequência escolar, carimbos de
certificação de escolaridade, máquinas para plastificar documentos,
blocos para atestados médicos e dezenas de ingressos de eventos passados
e futuros, além de mais de 200 nomes de clientes. “Com esses
formulários, o suspeito forjava carteiras de estudantes para seus
funcionários comprarem ingressos mais baratos ou fingir que comprariam
para menores que não estavam no local”, conta o militar. “Com os
atestados médicos, podiam, ainda, entrar na fila prioritária e até
faltar ao serviço para madrugar nas filas”, afirma.
Carro de luxo
Tanta sofisticação rendeu a Negro Gato destaque entre os cambistas. De
acordo com a PM, o atravessador e sua mulher montaram uma empresa de
marketing. Por meio da firma, conseguiram até o aluguel de uma máquina
de cartão de crédito que usavam para receber pagamentos. O equipamento
foi apreendido dentro de um Hyundai Tucson, estacionado em um posto de
gasolina no dia da prisão. “O veículo servia de escritório móvel para o
contraventor”, afirma o tenente André Oliveira. Foram encontrados também
R$ 12 mil, 35 ingressos para o jogo, listas de contabilidade de
entradas distribuídas para quase 30 comparsas. O volume de tíquetes
apreendidos poderia ter sido maior, já que Negro Gato foi detido quando o
jogo estava perto de começar.
Outros 300 ingressos escondidos
debaixo do estepe do veículo chamaram a atenção por dois motivos.
Primeiro por estarem todos ainda presos ao bloco e sem destaque, o que
pode indicar que o cambista conseguiu as entradas dentro da bilheteria.
Além disso, os ingressos eram para um jogo do Botafogo contra o
Atlético, em 2012, no Rio de Janeiro, o que mostra que o cambista tem se
aventurado em outros estados. “Só que como não vendeu nada, achamos que
a máfia de lá (do Rio) pôs ele para correr”, diz o tenente André
Oliveira. Outras nove pessoas foram detidas naquele dia, todos suspeitos
de trabalhar para Negro Gato. Diante de tanto material, o cambista, em
vez de ser punido com serviços comunitários, foi levado para o Ceresp da
Gameleira e responderá por formação de quadrilha e falsificação de
documentos públicos.
Tudo por uma entrada
» Diferentes táticas usadas por grupos de cambista
Recrutamento
São os mais comuns. Contratam pessoas para ficar nas filas das bilheterias. Depois, vendem mais caro os ingressos.
Desvio
São pessoas ligadas a algum nível da organização dos eventos e que desviam ingressos das bilheterias e municiam cambistas.
Reutilização
Têm
acesso a ingressos usados por frequentadores que já entraram no evento e
que são repassados a cambistas para nova utilização.
Fontes: Polícia Militar, Polícia Civil, cambistas
Sem fiscalização, lucro é fácil
Com alta procura por ingressos de futebol
e de shows, atravessadores agem sem preocupação em estádios e casas de
espetáculos. Polícia diz que mapeia grupos e identificou 22 cambistas
Mateus Parreiras
Na
porta do Palácio das Artes e do Chevrolet Hall ou perambulando nos
corredores do entorno dos estádios do Mineirão e do Independência,
cambistas que lucram com a falta de ingressos nas bilheterias oficiais
não têm medo da ação policial. “Já tirei R$ 2 mil limpinhos no Atlético e
São Paulo do Brasileirão do ano passado”, disse ao Estado de Minas um
dos atravessadores que age na capital mineira e que se diz entusiasmado
com a falta de ingressos nos jogos do Atlético, por causa da pequena
capacidade do estádio do Horto, bem como a entrada de Belo Horizonte na
rota dos grandes espetáculos – no sábado, o Mineirão recebe o show do
ex-beatle Paul McCartney. “Nunca tive problemas com a polícia”, garante.
A reportagem do EM encontrou na última semana vários cambistas agindo
na noite, sem se importar com qualquer fiscalização.
Na porta
do Palácio das Artes, no sábado, eram pelo menos seis homens apoiados
nos corrimãos metálicos da entrada anunciando sem qualquer
constrangimento ingressos para o concorrido show de Caetano Veloso. A
reportagem foi abordada por um deles, que se identificou como Jorge. “Tá
querendo vender ou comprar ingressos?”, indagou o homem de meia-idade e
agasalho listrado. Perguntado sobre o preço para compra, disse que
tinha ingressos de “meia” entrada que faria por R$ 180, mas que seria
preciso ir ao guichê do espaço para converter o ingresso em “inteira” –
por mais R$ 90 é possível trocar a meia-entrada por um ingresso normal.
No fim das contas, uma entrada vendida normalmente por R$ 180, sairia
por R$ 270.
Na entrada do Chevrolet Hall, na mesma noite, durante o
show da banda Monobloco, os cambistas perambulavam sem qualquer pudor e
ofereciam ingressos que tiravam dos bolsos. “O meu aqui é mais barato do
que o da bilheteria. Vendo por R$ 100. Lá, você vai ter de pagar R$
120”, dizia um dos rapazes, sem revelar como faz para vender mais barato
do que a organização uma entrada que não era de cortesia. “Pega meu
telefone se precisar de mais. Se quiser ingressos para shows de outros
dias, é só me dar uma ligada”, disse.
O cambista que diz ter
lucrado até R$ 2 mil numa só partida se considera um dos peixes pequenos
dentro dos esquemas que ocorrem na cidade. “Comecei há 4 anos, quando
tinha 30 anos. Meu negócio é colocar gente na fila. Dependendo do jogo,
ponho de seis a oito pessoas. Aí tem de tudo: fila preferencial,
grávida, aposentado...”, conta. O homem paga R$ 80 por cabeça e lanche,
mas a pessoa tem de chegar às 19h na bilheteria e só sair no outro dia.
“O único problema que já tive foi o de falta de ingressos (ele ri).
Nunca com a polícia. Só entrego por telefone para quem encomenda”,
revela. A clientela é farta e não exclusiva da capital: há gente de João
Monlevade, Itabira e Nova Era. “Tem médico, enfermeiro, diretor de
hospital, advogado, político. Gente que prefere ter garantido um
ingresso. Compro por R$ 20 e vendo por R$ 60”, diz.
O que diz a lei
A
atividade dos cambistas constitui crime contra a economia popular
porque “busca obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número
indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos
fraudulentos”, como consta na Lei 1.521, de 1951. A pena para essa
conduta é de seis meses a dois anos de prisão e multa – muitos juízes a
convertem em serviços comunitários. O Estatuto do Torcedor prevê ainda
pena de um a dois anos de prisão e multa por vender ingressos de evento
esportivo por preço superior ao estampado no bilhete. Fornecer, desviar
ou facilitar a distribuição de ingressos para venda por preço superior
ao estampado no bilhete pode resultar em pena de reclusão de dois a
quatro anos e multa.
Farra com entrada usada
Mateus Parreiras
Segundo um produtor
cultural que já coordenou a bilheteria de eventos, há outra tática usada
por cambistas em micaretas e festas de faculdades, por exemplo. “Quando
era responsável pela portaria, a gente faturava alto. Se o evento
estava lotado, pegava ingressos já depositados nas urnas por quem já
entrou e revendia para os cambistas”, admite. Se houvesse a necessidade
de destacar as entradas, era preciso combinar com os seguranças. “A
gente falava para os porteiros e vigilantes para não destacar alguns
ingressos, no meio da confusão, e depois colocar nos bolsos. Aí eles nos
repassavam e a gente vendia”, detalha.
De acordo com o
comandante do 34º Batalhão da PM, tenente-coronel Idzel Fagundes, desde o
início do ano flanelinhas e cambistas estão sendo localizados por
policiais à paisana e denunciados. “A ação desses agentes não será
tolerada durante os eventos no Mineirão”, garantiu o policial. De acordo
com o delegado Anderson Alcântara, chefe do 1º Departamento da Polícia
Civil, a ação dos atravessadores durante shows e jogos está sendo
mapeada para saber quem trabalha para quem, onde agem quadrilhas e como o
fazem. “O trabalho começou neste ano e já identificamos 22 cambistas e
300 flanelinhas, sendo que muitos agem em mais de um lugar ou evento”,
disse.
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