Menina, fui cobaia de meu pai quando ele resolveu pintar as teclas das máquinas de escrever da sua escola para que os alunos aprendessem a datilografar com os dez dedos sem olhar o teclado. A gente tinha de se guiar por um cartaz na parede, que mostrava as cores das teclas e os caracteres correspondentes. Contando assim parece até complicado, mas na época não achei.
Sempre gostei de máquinas de escrever. E de fotografar. Só agora me dou conta disso: de quanto sempre gostei de máquinas!
Em 1984, quando entrei para a Redação da Folha, adotei, feliz, o computador. A principal diferença entre o teclado de uma velha máquina de escrever e um computador é a tecla DELETE. Finalmente eu não precisava datilografar novamente páginas inteiras quando queria alterar alguma coisa mas fazia questão de um resultado final sem rasuras nem emendas.
Comecei a me divertir trocando parágrafos de lugar só para ver como ficava. Depois vieram as disputas com o corretor ortográfico. Eu sempre querendo saber mais do que ele! Com o Excel a mesma coisa: faço cálculos de cabeça ou apelo a uma calculadora cada vez que desconfio dos resultados do Excel. Por incrível que pareça ele erra. Pergunte a quem usa bastante.
Se tenho nostalgia não é exatamente da máquina de escrever, mas de uma sensação ambígua.
Na Folha da minha mocidade a corrente elétrica variava muito, desligando os computadores. A tela escurecia. Ouviam-se gemidos. Suspiros. Palavrões. Todo o trabalho de horas que não fora arquivado desaparecia para sempre, enquanto o relógio marcava o nosso atraso.
Naqueles momentos, passado o desespero inicial, uma extraordinária sensação de leveza me tomava. Era afinal necessário começar de novo. Eu não estava mais presa ao que escrevera antes. E jamais o novo texto seria igual ao anterior. Por que haveria de ser?
Uma sensação de liberdade. Uma desculpa para o esquecimento. Uma oportunidade de mudança. Um renascimento mais fluente e apressado poderia surgir.
Hoje o computador se encarrega de salvar automaticamente os documentos que escrevo, eliminando a possibilidade da perda. Uma cesta de lixo virtual dá sobrevida àquilo que decidi apagar. Preciso insistir. Preciso lembrar de reapagar o já apagado. Preciso deletar o deletado, se quiser impedir que ressuscite quando menos espero e desejo.
Escrevo para lembrar. Mas também escrevo para poder esquecer. Escrevo para esvaziar a cabeça e poder dormir. Mas salvo compulsivamente e-mails, arquivos e textos para ler depois. Marco e-mails lidos como não lidos. Fantasio que armazenar é o mesmo que memorizar. Quero acreditar que guardar é o mesmo que salvar. Ilusão.
Sem tempo nem lembrança de voltar ao que foi arquivado, salvar pode ser o mesmo que matar. Água abaixo no Lete, o rio mítico do esquecimento.
Hoje, o mundo está repleto de back-ups, duplicações, replicações, arquivamento em "nuvem": essa metáfora celestial, paraíso e inferno da computação contemporânea, com suas promessas e sustos a nos lembrar eternamente que nada é infalível. Nem mesmo o fim é infalível.
Marion Strecker é jornalista e cofundadora do UOL. Começou sua carreira como professora de música e coeditora da revista Arte em São Paulo. É formada em comunicação social pela PUC-SP. Trabalhou na Redação daFolha entre 1984 e 1996, onde foi redatora, crítica de arte, editora da 'Ilustrada', editora de suplementos, coordenadora de planejamento, coordenadora de reportagens especiais, repórter especial, diretora do Banco de Dados, diretora da Agência Folha e coautora do Manual da Redação. É colunista da Folha desde 2010. Pioneira na internet no Brasil, liderou a equipe que criou a FolhaWeb em julho de 1995 e foi diretora de conteúdo do UOL de 1996 a 2011. Viveu em San Francisco, Califórnia, de julho de 2011 a julho de 2012, atuando como correspondente do portal. Mudou-se para Nova York, onde começou a escrever um livro sobre internet, previsto para sair em 2013 pela Editora Record. Atualmente vive em São Paulo.
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