sábado, 25 de maio de 2013

A defesa da desordem - José Castello


O Globo - 25/05/2013

O que seria da vida se ela fosse
pura ordem? Ainda faria sentido,
nesse caso, pensar no humano?
Se a vida fosse só método
e conveniência, o que seria
de nós? É a desordem — desvio
da ordem e do cálculo — que funda o homem.
Que lhe dá um nome (único) e uma identidade
(singular). Só a desordem absoluta das impressões
digitais nos confere um registro civil e
uma soberania. É a inquieta expansão do universo
que nos faz crescer. É a desordem, enfim,
que, ao nos afastar do bom senso, nos empurra
para nosso próprio centro.

Não é possível pensar em arte sem considerar
a presença da desordem. Não há poesia que mereça
este nome sem alguma dose dela. Por isso,
poetas perseguem, com grande fome, o desalinho
e a imperfeição. “Você é esse monte de ossos/
imperfeitos e finitos”, lembra-nos, sem piedade,
o poeta Celso Gutfreind, no seu “Em defesa
de certa desordem” (Artes e Ofícios). Desafia,
com firmeza, a arrogância da ordem. Enfrenta-a.

Na semana passada, na Festa Literária de Porto
Alegre, assisti a uma palestra de Gutfreind.
Autor de histórias para crianças e médico psicanalista,
ele fala com desafetação e serenidade.
Fala com o desalinho de quem pensa em voz alta,
e não com a astúcia dos pregadores. Suas palavras
grudaram em mim. Na manhã seguinte,
dei uma caminhada pelo Parque da Redenção.
Estava cansado. À tarde, uma oficina literária me
esperava. Precisava de certa ordem interior como
moldura para alinhar minha desordem. Levei
comigo o livro de Celso Gutfreind, e volta e
meia me detive para ler alguns poemas. “A ordem
não altera/ a desordem bonita da alegria”,
ele me disse. “Só depois/ na ausência,/ vêm o
vazio/ ordem dor/ e esta arte”. Tudo o mais só
vem depois de desarranjo e da imperfeição. Só
do caos surge algum corpo. Eu precisava aceitar.

Sem a experiência anterior da desordem, nenhuma
ordem se fixa, repeti, à tarde, a meus alunos
de oficina. Nenhuma escritura toma forma.

A ordem (o limite) precisa da desordem (a vida
primária, em ebulição) para erguer seu cerco. Caso
contrário, ela se torna só um muro contra o
qual a vida bate e se desmancha. É verdade: o poeta
cria, quase sempre, a partir do vazio e da dor.
Mas necessita de uma certa desordem para arrancar,
da ausência e sofrimento, alguma alegria. Enfatiza
Gutfreind: “Se não há certa
desordem,/ se sujeito e predicado,/
depois advérbio à espera/
do ponto final, não é”. Sintetiza:
“Se for com lógica/ também
não é”. Mas então quando
é? Quando, enfim, surge um poeta?
Responde: “Fica sendo
quando/ curto/ súbito/ bagunça/
subverte/ desconcerta”.

Poesia trêmula e tensa, que
interroga a si mesma, a de Celso
Gutfreind não teme as desordens
do corpo, não se esquiva da turbulência dos
palavrões, não descarta a ebulição do erotismo. É
uma poesia que se faz das partes mais íntimas do
humano, mesmo daquelas que habitam territórios,
na aparência, fora do poético. Argumenta: “O
escritor tem mais chance que o andarilho/ Porque
a palavra escrita estica a paisagem/ O fotógrafo
tem mais chance que o escritor/ Porque a imagem
diz mais do que a palavra/ O músico tem mais
chance que o fotógrafo”. E a supremacia da música,
que é pura sensação, não precisa se explicar.
Sabe Gutfreind, em consequência, que sua arte é
limitada — já que a palavra sempre corta. A palavra
retalha. A palavra é uma rede com que o poeta
luta para capturar o absurdo.

Nada mais faz que entregar esta
luta ao leitor. O artista tem
sentimentos, mas não os leva
para casa: cabe-lhe a missão pesada
de expressar. “Ou seja, de-/
sobedecer a química, / à física à
biologia/ e te carregam sem ti”.
Na arte — na poesia — o sujeito
se despede de suas crenças. De
suas margens. Entra em certo
estado de colapso, que o sacode
para fora de si — como os cães
que, com o balançar dos pelos, expulsam o que os
incomoda. O artista, diz Gutfreind, expõe os sentimentos
e, com isso, deles se separa. Somos, mesmo
na maturidade, semelhantes aos bebês, que
fervem de emoções. Continua: “O bebê tem uma
caixa/ para guardar as noções./ É noite, e está vazia/
de ideias, mas muito cheia/ de horror, amor,
esperança”. Pode não pensar, mas sente. Ainda
não tem a posse do nome, mas um nome já o
possui.

Com a mesma matéria primária, o poeta, por
mais culto que se arvore, é obrigado a se ver. Como
um bebê, que chora sem saber por quê. Só
quando cresce, o bebê saberá de onde veio e onde
está. Mas essa parte antiga, no poeta, nunca
se extingue. A partir da primeira desordem, em
que as palavras não passam de murmúrios, ele
escreve seus versos. Também o corpo, nos alerta
Gutfreind, vive em estado de convulsão, e é dele
que poetas arrancam alguma beleza. “As células
não são quietas,/ tampouco definitivas./ Lógica
não manda nelas/ nem o tempo em movimento./
A alegria decide se elas morrem/ ou se ficarão
vivas”. Enquanto isso, a beleza varia “não
conforme a luz,/ mas, novamente e sempre, a
alegria”. Muito mais que um efeito do biológico,
a beleza se guarda no interior do corpo. Vem daquilo
que não se vê e, no entanto, se mostra. Registra
o poeta: “Já ouvi um sorriso tornear a coxa./
Já vi um desejo esculpir a bunda”. Sem desejo,
beleza não há.

Filhos de desordem, precisamos de alguma ordem
para não nos afogar. Para que a desordem
essencial, enfim, apareça. Triste é a vida sem
qualquer instabilidade e erro. Alerta-nos Celso
Gutfreind que o mais prudente é abandonar as
ideias fixas. “Os loucos as crianças os viajantes/
cavalgaram bom bocado/ com ânsia e estão livres/
do significado”. Defesa radical da poesia
que, independente de seus conteúdos, conduz
sempre ao desconhecido. E, se é desconhecido,
alguma (certa) desordem sempre haverá.

Por isso prefere Celso permanecer ao lado dos
“artistas ardentes sem disfarce”. Daqueles que
não têm mundo fixo. Dos que não temem expor
seu tremor. Que dispensam as máscaras, mesmo
que seja para exibir um rosto de cicatrizes. Fica o
poeta com a desordem que — limitada por um
desejo de ordem que nunca se satisfaz — é o que
nos move. A certa (e indispensável) desordem
que nos mantém alerta e vivos.

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