Encontro entre Foucault e Chomsky, realizado no começo dos anos 1970, apresenta o clássico dilema entre
as ideias inatas e o papel da coerção social. Avanços da neurociência trazem novos elementos para o debate
Gustavo Fonseca
Estado de Minas: 25/05/2013
Em novembro de
1971, dois dos mais importantes pensadores do século 20, o linguista
americano Noam Chomsky e o filósofo francês Michel Foucault, se
encontraram na Holanda para discutir temas como a emancipação social, a
violência revolucionária, o papel do proletariado na luta de classes e a
natureza humana, evento transmitido pela televisão holandesa e que
originou o livro The Chomsky-Foucault Debate: On Human Nature. Nessa
conversa, Chomsky, de um lado, enfatizava a visão cartesiana das ideias
inatas e de características intrínsecas ao ser humano, enquanto
Foucault, de outro, defendia a relevância das instituições sociais como
instrumentos de moldura do caráter e da moral das pessoas. Um assunto
fascinante que atravessa milênios de reflexão filosófica. Platão, por
exemplo, defendia a existência de certas ideias inatas. Já Aristóteles
acreditava que nada na mente independia do mundo exterior, percebido
pelos sentidos. Séculos mais tarde, a questão oporia racionalistas como
Descartes e Spinoza, partidários das ideias inatas, e empiristas como
Locke e Hume, para os quais nossas ideias e sistemas de valores se
originam exclusivamente de nossas experiências.
De acordo com
Chomsky, cuja linguística pôs em xeque todo o programa behaviorista,
além de projetar sociedades mais justas, nas quais todos possam ser de
fato livres e dar vazão à própria criatividade, é fundamental
compreender os mecanismos de opressão e de coerção de nossa sociedade,
tópico ao qual, como se sabe, Foucault dedicou alguns de seus mais
importantes trabalhos, entre os quais Vigiar e punir. E neste ponto os
dois concordam plenamente. No entanto, ao defender certas
características humanas inatas, como noções fundamentais de justiça, de
moral e de ética, Chomsky leva Foucault a uma atitude mais cética,
ressaltando o papel político e social da cultura e das instituições
coercitivas. Segundo Chomsky, “é muito apressado caracterizar nosso
sistema de justiça como um mero sistema de opressão de classes (...).
Ele expressa sistemas de opressão de classe e elementos de outros tipos
de opressão, mas ele também expressa um tipo de procura por verdadeiros
conceitos humanos de justiça, decência, amor, bondade, simpatia e assim
por diante”.
Não convencido, Foucault rebate: “Contrariamente ao
que você pensa, nada me pode impedir de acreditar que essas noções de
natureza humana, de bondade, de justiça, de realização da essência
humana são noções e conceitos que se formaram no interior de nossa
civilização, no interior de nosso tipo de saber e do nosso modo de
filosofar e que formam parte de nosso sistema de classes. Não podemos,
lamentavelmente, nos servir dessas noções para descrever ou justificar
um combate que deveria (que deve em princípio) destruir completamente os
fundamentos da nossa sociedade. Essa é uma extrapolação para a qual não
posso achar uma justificação histórica”.
Com o avanço dos
estudos de neurociência e de psicologia nos últimos 40 anos, novas luzes
foram lançadas nessa discussão a respeito da natureza humana e do papel
da sociedade e do momento histórico na constituição do caráter
individual. Recentemente, a conceituada revista Plos publicou um artigo
das psicólogas da Universidade de British Columbia Kiley Hamlin e de
Yale Karen Wynn, reproduzido na página de Ciência do Estado de Minas em
28 de março, no qual as autoras revelam que em seus estudos descobriram
que os bebês tendem a simpatizar com vilões que maltratam personagens
com os quais eles (bebês) não se identificaram. O objetivo da pesquisa
era esclarecer se a tendência de se unir aos iguais e rejeitar os
diferentes estava presente já na infância.
O método utilizado por
elas e equipe foi bem simples: com base no conhecimento científico de
que a maioria das pessoas, independentemente da faixa etária, simpatizam
mais com heróis do que com vilões, os psicólogos encenaram a
criancinhas de 9 a 14 meses com marionetes a história de um coelho que
aparecia e agia de modo igual ou diferente delas, dizendo “Hum!” ou
“Eca!” ao ver alimentos como feijão verde ou biscoito. Em seguida, os
bebês assistiam à cena do coelho brincando com uma bola que caía de sua
mão e ia parar perto de dois cachorros. Um dos cachorros devolve a bola
ao coelho, mas o outro chuta a bola para longe. Ao fim da encenação, os
bebês escolhiam pegar o cachorro que ajudou o coelho ou aquele que o
puniu. Para a surpresa dos pesquisadores, os bebês escolheram a
marionete que pune aquela que não compartilha de suas preferências
alimentares.
Em outro estudo recente, também publicado na página
de Ciência do EM em 28 de março, pesquisadores da Universidade de
Michigan descobriram que as crianças até 6 anos, mesmo cientes das
regras sociais, passam por cima delas em benefício próprio. De acordo
com os experimentos dos psicólogos americanos, a partir dos 36 meses de
vida os pequenos têm a clara noção de que não podem ficar com tudo só
para eles. “Crianças bem pequenas têm um entendimento sofisticado de
justiça”, diz o artigo. “No segundo ano de vida, elas esperam que duas
pessoas recebam quantidades iguais de determinada coisa fornecida por um
terceiro indivíduo.” Mas o que se constata na prática é bem diferente,
segundo os autores: “Apesar dessa compreensão precoce de igualdade e
justiça, os mais novos têm um comportamento autocentrado quando são eles
que devem dividir”.
Desejo e justiça O método empregado para
chegar a essas conclusões também foi simples: os psicólogos usaram o
clássico jogo do ditador, com o qual o participante deveria dividir
recursos com pessoas que nunca tinha visto antes. Para o público
infantil, o objeto a distribuir eram adesivos, em vez do tradicional
dinheiro. Divididos os participantes em grupos, ao fim de determinadas
atividades, os pesquisadores perguntavam aos donos dos adesivos se cada
criança deveria ser recompensada e, caso sim, com quantos adesivos. Para
completar, os donos dos adesivos deveriam dizer se achavam que os
outros participantes com os adesivos iriam partilhá-los com os demais
membros do grupo.
Como resultado, os psicólogos notaram que, dos
3 aos 6 anos, as crianças diziam uma coisa e faziam outra. Elas
concordavam que os adesivos deveriam ser usados para recompensar os
coleguinhas que se esforçaram nas atividades. Detalhe: desde que essa
recompensa não ocorresse no grupo que elas chefiavam. Em outras
palavras, as crianças não quiseram partilhar seus próprios adesivos,
apesar de acharem correto que os outros donos de adesivos os
distribuíssem. Tal atitude só mudou entre os participantes de 7 e 8
anos, cujos discursos se verificavam também na prática. Assim, conforme
os autores do estudo, até os 6 anos, as crianças têm a noção apropriada
da distribuição igualitária, mas o desejo de ficar com os adesivos se
sobrepõe ao senso de justiça. Com o passar dos anos, porém, mesmo
contrariadas, elas decidem distribuir melhor os adesivos, o que sinaliza
uma compreensão mais adequada das regras de convivência social.
Os
dois experimentos sinalizam que, se Chomsky parece ter razão em
defender noções humanas inatas de justiça e de decência, talvez esteja
enganado ao falar em amor, bondade e simpatia inerentes ao ser humano.
Ao menos parcialmente enganado, já que a pesquisa de Kiley Hamlin e de
Karen Wynn constatou que nossa simpatia (e provavelmente nossa bondade e
nosso amor) é tendenciosa aos nossos iguais e a pesquisa dos psicólogos
de Michigan revelou que o senso de justiça não é o bastante para que
tomemos as decisões corretas. Já Foucault parece ter se enganado ao ser
tão cético quanto às noções fundamentais humanas e acreditar tão somente
que elas se originam em nossa civilização, em nosso tipo de saber e em
nosso modo de filosofar.
De acordo com Hamlin, “a pesquisa
demonstra a importância da socialização, porque, em algum momento, esse
comportamento básico é suplantado pela aceitação e pelo sentimento de
igualdade”. A afirmação soa ingênua tendo em vista fenômenos amplamente
conhecidos em diferentes sociedades e momentos históricos como as
guerras, o preconceito racial, o egoísmo das classes dominantes e a
aversão a estrangeiros. Além disso, mesmo que o estudo dos pesquisadores
de Michigan indique que a partir dos 7 anos as crianças distribuem mais
justamente o que possuem, não se pode deixar de considerar que, de
forma clara, o velho sentimento infantil de querer tudo para si aflora
muito nitidamente em sociedades individualistas e competitivas como a
norte-americana, cujo modelo vem sendo largamente copiado por outros
países mundo afora, inclusive os chamados emergentes, entre os quais se
inclui o Brasil.
Com base em pesquisas como as elaboradas por
esses psicólogos, a velha questão que debatiam Platão e Aristóteles,
racionalistas e empiristas, e mais recentemente Chomsky e Foucault,
ganha novos contornos com as descobertas sobre a natureza humana (ainda
que sempre discutíveis e muitas vezes provisórias). No entanto, a
pergunta segue essencialmente a mesma: como o ser humano, com suas
noções, instintos, conceitos e preconceitos fundamentais, e inserido
numa determinada cultura de um determinado momento histórico, pode
organizar-se em sociedades mais justas e igualitárias? Ter clareza
quanto à nossa constituição e quanto ao meio social em que vivemos, com
seus mecanismos de controle e repressão, é o primeiro e mais importante
passo rumo a esse objetivo, cujas barreiras, paradoxalmente, são
levantadas única e exclusivamente pelo próprio ser humano.
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