sábado, 25 de maio de 2013

Humano, naturalmente humano-Gustavo Fonseca‏

Encontro entre Foucault e Chomsky, realizado no começo dos anos 1970, apresenta o clássico dilema entre as ideias inatas e o papel da coerção social. Avanços da neurociência trazem novos elementos para o debate 


Gustavo Fonseca

Estado de Minas: 25/05/2013 

Em novembro de 1971, dois dos mais importantes pensadores do século 20, o linguista americano Noam Chomsky e o filósofo francês Michel Foucault, se encontraram na Holanda para discutir temas como a emancipação social, a violência revolucionária, o papel do proletariado na luta de classes e a natureza humana, evento transmitido pela televisão holandesa e que originou o livro The Chomsky-Foucault Debate: On Human Nature. Nessa conversa, Chomsky, de um lado, enfatizava a visão cartesiana das ideias inatas e de características intrínsecas ao ser humano, enquanto Foucault, de outro, defendia a relevância das instituições sociais como instrumentos de moldura do caráter e da moral das pessoas. Um assunto fascinante que atravessa milênios de reflexão filosófica. Platão, por exemplo, defendia a existência de certas ideias inatas. Já Aristóteles acreditava que nada na mente independia do mundo exterior, percebido pelos sentidos. Séculos mais tarde, a questão oporia racionalistas como Descartes e Spinoza, partidários das ideias inatas, e empiristas como Locke e Hume, para os quais nossas ideias e sistemas de valores se originam exclusivamente de nossas experiências.

De acordo com Chomsky, cuja linguística pôs em xeque todo o programa behaviorista, além de projetar sociedades mais justas, nas quais todos possam ser de fato livres e dar vazão à própria criatividade, é fundamental compreender os mecanismos de opressão e de coerção de nossa sociedade, tópico ao qual, como se sabe, Foucault dedicou alguns de seus mais importantes trabalhos, entre os quais Vigiar e punir. E neste ponto os dois concordam plenamente. No entanto, ao defender certas características humanas inatas, como noções fundamentais de justiça, de moral e de ética, Chomsky leva Foucault a uma atitude mais cética, ressaltando o papel político e social da cultura e das instituições coercitivas. Segundo Chomsky, “é muito apressado caracterizar nosso sistema de justiça como um mero sistema de opressão de classes (...). Ele expressa sistemas de opressão de classe e elementos de outros tipos de opressão, mas ele também expressa um tipo de procura por verdadeiros conceitos humanos de justiça, decência, amor, bondade, simpatia e assim por diante”.

Não convencido, Foucault rebate: “Contrariamente ao que você pensa, nada me pode impedir de acreditar que essas noções de natureza humana, de bondade, de justiça, de realização da essência humana são noções e conceitos que se formaram no interior de nossa civilização, no interior de nosso tipo de saber e do nosso modo de filosofar e que formam parte de nosso sistema de classes. Não podemos, lamentavelmente, nos servir dessas noções para descrever ou justificar um combate que deveria (que deve em princípio) destruir completamente os fundamentos da nossa sociedade. Essa é uma extrapolação para a qual não posso achar uma justificação histórica”.

Com o avanço dos estudos de neurociência e de psicologia nos últimos 40 anos, novas luzes foram lançadas nessa discussão a respeito da natureza humana e do papel da sociedade e do momento histórico na constituição do caráter individual. Recentemente, a conceituada revista Plos publicou um artigo das psicólogas da Universidade de British Columbia Kiley Hamlin e de Yale Karen Wynn, reproduzido na página de Ciência do Estado de Minas em 28 de março, no qual as autoras revelam que em seus estudos descobriram que os bebês tendem a simpatizar com vilões que maltratam personagens com os quais eles (bebês) não se identificaram. O objetivo da pesquisa era esclarecer se a tendência de se unir aos iguais e rejeitar os diferentes estava presente já na infância.

O método utilizado por elas e equipe foi bem simples: com base no conhecimento científico de que a maioria das pessoas, independentemente da faixa etária, simpatizam mais com heróis do que com vilões, os psicólogos encenaram a criancinhas de 9 a 14 meses com marionetes a história de um coelho que aparecia e agia de modo igual ou diferente delas, dizendo “Hum!” ou “Eca!” ao ver alimentos como feijão verde ou biscoito. Em seguida, os bebês assistiam à cena do coelho brincando com uma bola que caía de sua mão e ia parar perto de dois cachorros. Um dos cachorros devolve a bola ao coelho, mas o outro chuta a bola para longe. Ao fim da encenação, os bebês escolhiam pegar o cachorro que ajudou o coelho ou aquele que o puniu. Para a surpresa dos pesquisadores, os bebês escolheram a marionete que pune aquela que não compartilha de suas preferências alimentares.

Em outro estudo recente, também publicado na página de Ciência do EM em 28 de março, pesquisadores da Universidade de Michigan descobriram que as crianças até 6 anos, mesmo cientes das regras sociais, passam por cima delas em benefício próprio. De acordo com os experimentos dos psicólogos americanos, a partir dos 36 meses de vida os pequenos têm a clara noção de que não podem ficar com tudo só para eles. “Crianças bem pequenas têm um entendimento sofisticado de justiça”, diz o artigo. “No segundo ano de vida, elas esperam que duas pessoas recebam quantidades iguais de determinada coisa fornecida por um terceiro indivíduo.” Mas o que se constata na prática é bem diferente, segundo os autores: “Apesar dessa compreensão precoce de igualdade e justiça, os mais novos têm um comportamento autocentrado quando são eles que devem dividir”.

Desejo e justiça O método empregado para chegar a essas conclusões também foi simples: os psicólogos usaram o clássico jogo do ditador, com o qual o participante deveria dividir recursos com pessoas que nunca tinha visto antes. Para o público infantil, o objeto a distribuir eram adesivos, em vez do tradicional dinheiro. Divididos os participantes em grupos, ao fim de determinadas atividades, os pesquisadores perguntavam aos donos dos adesivos se cada criança deveria ser recompensada e, caso sim, com quantos adesivos. Para completar, os donos dos adesivos deveriam dizer se achavam que os outros participantes com os adesivos iriam partilhá-los com os demais membros do grupo.

Como resultado, os psicólogos notaram que, dos 3 aos 6 anos, as crianças diziam uma coisa e faziam outra. Elas concordavam que os adesivos deveriam ser usados para recompensar os coleguinhas que se esforçaram nas atividades. Detalhe: desde que essa recompensa não ocorresse no grupo que elas chefiavam. Em outras palavras, as crianças não quiseram partilhar seus próprios adesivos, apesar de acharem correto que os outros donos de adesivos os distribuíssem. Tal atitude só mudou entre os participantes de 7 e 8 anos, cujos discursos se verificavam também na prática. Assim, conforme os autores do estudo, até os 6 anos, as crianças têm a noção apropriada da distribuição igualitária, mas o desejo de ficar com os adesivos se sobrepõe ao senso de justiça. Com o passar dos anos, porém, mesmo contrariadas, elas decidem distribuir melhor os adesivos, o que sinaliza uma compreensão mais adequada das regras de convivência social.

Os dois experimentos sinalizam que, se Chomsky parece ter razão em defender noções humanas inatas de justiça e de decência, talvez esteja enganado ao falar em amor, bondade e simpatia inerentes ao ser humano. Ao menos parcialmente enganado, já que a pesquisa de Kiley Hamlin e de Karen Wynn constatou que nossa simpatia (e provavelmente nossa bondade e nosso amor) é tendenciosa aos nossos iguais e a pesquisa dos psicólogos de Michigan revelou que o senso de justiça não é o bastante para que tomemos as decisões corretas. Já Foucault parece ter se enganado ao ser tão cético quanto às noções fundamentais humanas e acreditar tão somente que elas se originam em nossa civilização, em nosso tipo de saber e em nosso modo de filosofar.

De acordo com Hamlin, “a pesquisa demonstra a importância da socialização, porque, em algum momento, esse comportamento básico é suplantado pela aceitação e pelo sentimento de igualdade”. A afirmação soa ingênua tendo em vista fenômenos amplamente conhecidos em diferentes sociedades e momentos históricos como as guerras, o preconceito racial, o egoísmo das classes dominantes e a aversão a estrangeiros. Além disso, mesmo que o estudo dos pesquisadores de Michigan indique que a partir dos 7 anos as crianças distribuem mais justamente o que possuem, não se pode deixar de considerar que, de forma clara, o velho sentimento infantil de querer tudo para si aflora muito nitidamente em sociedades individualistas e competitivas como a norte-americana, cujo modelo vem sendo largamente copiado por outros países mundo afora, inclusive os chamados emergentes, entre os quais se inclui o Brasil.

Com base em pesquisas como as elaboradas por esses psicólogos, a velha questão que debatiam Platão e Aristóteles, racionalistas e empiristas, e mais recentemente Chomsky e Foucault, ganha novos contornos com as descobertas sobre a natureza humana (ainda que sempre discutíveis e muitas vezes provisórias). No entanto, a pergunta segue essencialmente a mesma: como o ser humano, com suas noções, instintos, conceitos e preconceitos fundamentais, e inserido numa determinada cultura de um determinado momento histórico, pode organizar-se em sociedades mais justas e igualitárias? Ter clareza quanto à nossa constituição e quanto ao meio social em que vivemos, com seus mecanismos de controle e repressão, é o primeiro e mais importante passo rumo a esse objetivo, cujas barreiras, paradoxalmente, são levantadas única e exclusivamente pelo próprio ser humano.

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